2. Com a razão nas mãos

Porque os homens coincidiam nestas bases da ordem social, reputadas inabaláveis, as suas divergências tiveram o porte amável dos dissídios académicos.

E claro que houve muitas cargas de cavalaria, muitas espadeiradas e tintos daquelas espingardas de carregar pela boca, que dão coice no atirador; mas depois tudo ficava na mesma, e só às vezes acontecia que nas boticas da província os parceiros habituais interrompiam heroicamente, por fidelidade aos vencidos, o interminável gamão ou os patuleias, os pés-frescos da política, da simbólica barba-à-passa-piolho, levavam a sua intransigência ao cúmulo de fundar outra filarmónica ou assembleia local.

Lutava-se pela Constituição ou pela Carta Constitucional, pela soberania popular, pela liberdade, mas o Código Civil permanecia intangível, como coisa sagrada. Políticos salvadores não os houve, nem felizmente podia haver, por variadíssimas razões. A fauna dos políticos salvadores só nasce e prolifera nas sociedades depauperadas, quando cada um espera dos outros o que só pode advir do esforço individual; e além disso, lutar pela liberdade significava então arrancar ao poder os elementos agressivos do mando, estabelecer entre os governantes e os governados um complicado sistema de defesas, impeditivo do arbítrio e dos assaltos contra a atividade e a tranquilidade de todos e de cada um.

Pois bem! Perante o esmagamento da atual classe média, sem suficiência económica e rica apenas de preconceitos, é acaso possível a ressurreição do estilo político do século passado?

A meu ver, não é inteiramente impossível, mas muitíssimo improvável. O exemplo da Alemanha de Hitler, ou seja a morte da Democracia pelas urnas, é terrivelmente elucidativo.

É que numa sociedade proletarizada, sem classe média economicamente independente, cônscia da sua missão social, aberta a todos os homens ativos, onde apenas existam os dois extremos antagónicos — o muito rico e o muito pobre — só as paixões de inspiração económica excitam e dinamizam as massas. É em torno da repartição das riquezas que se concentram as emoções políticas, e essas emoções tendem necessariamente para qualquer destes dois polos opostos: o polo comunista, internacional e marxista, ou o polo nacionalista, de Estado comercial fechado, mais ou menos segundo o pensar de Fichte, que com Marx, é o condutor oculto das massas proletárias dos nossos dias.

Em tal sociedade, o pão quotidiano é a necessidade primária de cada um e o supremo problema político; e a democracia liberal, prova-o claramente a invejável estabilidade da França e, apesar de tudo, a Inglaterra, só vive num meio social onde uma forte classe média de agricultores, comerciantes e industriais tem a sensação de trabalhar no duradoiro e preza e defende a pequena economia diária como um valor supremo. Quando a classe média dá o tom à política, a capital consagra, mas quem manda é a província, e a esfera da atividade económica é um terreno sagrado, que cada um defende das algaradas do Estado; e porque a maioria coincide na admissão e na intangibilidade do direito de propriedade e de transmissão dos bens familiares, e não sofra a incerteza do pão para o dia seguinte, as paixões políticas decorrem num plano ideológico, da monarquia para a república, do sufrágio restrito para o sufrágio universal, do padre para o professor primário, da patrão para o operário, do catecismo para o livro, do rico para o indigente, do agricultor para o industrial, do monopolista esperto e ganancioso para o acionista incauto e para o consumidor desprotegido.

Onde existe hoje o político capaz do heroísmo de desfraldar a bandeira da classe média, de arrostar com a impopularidade do epíteto de burguês, de proclamar: Seja o Estado pobre, mas sêde vós ricos?

A improbabilidade não resulta apenas da carência deste heroísmo, tão difícil para os descendentes dos Gamas e dos Albuquerques, que só estimam e admiram a tesura espetacular de vencedor. Tem origens mais profundas, e supondo mesmo, com generosidade, que aquele heroísmo político embriagava um fogoso condutor de massas e o levava lá acima, a São Bento e ao Terreiro do Paço, a ressurreição do estilo democrático-liberal do século XIX seria precária e fugaz. É que para a improbabilidade desta política no nosso século concorrem simultaneamente o curso novo do pensamento, radicalmente diverso do pensar novecentista, e a decadência atual da família, pois tanto os ultrarreacionários como os da extrema-esquerda coincidem na luta contra os tradicionais direitos familiares, com os quais querem enfeitar o Estado.

Ideias e factos conspiram de braço dado contra a inteligentíssima construção política que os nossos bisavôs edificaram com romântico entusiasmo, inolvidáveis sacrifícios e alegre confiança no futuro.

Esse liberalismo está morto; o ideal liberal, porém, é vivo e eterno. Vestir o liberalismo de sempre à século XX — eis a mágica empresa que jaz aí, à espera de quem a tome nas mãos robustas e na mente clara. O liberalismo do século XIX morreu?

Pois viva o liberalismo!

VI

Está dito e redito: teoricamente, Liberalismo e Democracia não são termos sinónimos. Exprimem e significam respostas diversas a quesitos diversos da consciência política — a democracia indicando quem deve mandar legitimamente, e o liberalismo consistindo numa rede de defesa contra o poder de quem manda.

Quando a dissociação e o incomensurável contraste das duas respostas decorrem apenas na ordem racional não vem mal ao mundo, e até advêm vantagens designadamente para os professores de direito público, que criam fama de renovadores de ideias, e para os publicistas e jornalistas políticos, pois podem assediar a fortaleza do existente com inaudito e flamante bombardeio. O bombardeamento dos publicistas políticos é um espetáculo vistoso e absolutamente necessário para a saúde dos povos civilizados.

Não é, porventura, na fecundidade do desvario político dos seus publicistas que reside uma das maiores glórias da França e da Inglaterra?

Todas as ideias, desde as triviais às mais profundas ou lunáticas, encontram sempre nestes povos um apologeta, e como os apologetas são numerosos, ardidos no combate e contraditórios nas soluções e nos objetivos, destroem-se uns aos outros. Realiza-se, assim, uma espécie de fagocitose política, com a qual se honram às vezes, os autores, erguidos pelos basbaques do estrangeiro à estatura do grande Elias, quase sempre lucram os editores, pela variedade da exportação livresca, e sempre beneficiam os respetivos nacionais, porque, além do salutar desporto das ideias, têm a sensação de não habitarem na pasmaceira ou um túmulo.

E o bonito é que, sob o constante bombardeamento dos publicistas e dos periódicos, a vida social e a vida de cada um seguem um curso normal e pacífico. Diz-se que a democracia liberal torna os governos anémicos e escandalosamente fracos; mas foi Disraeli quem converteu a Inglaterra, mediante o Parlamento, à ideia imperial; foi a Terceira República quem deu à França o império colonial, e com a ajuda do Parlamento, sem esquecer o respetivo cortejo de interpelações, desperdícios de tempo, instabilidade do executivo e outras pretensas calamidades, uma e outra democracia conduziram os seus povos à vitória, na Grande Guerra.

É possível que tudo isto seja fraqueza e nada valha em comparação do franzir das sobrancelhas de César ou de uma bem conduzida marcha de milícias de assalto contra não-arianos, e é possível, porque a força e a debilidade são noções relativas. Porém, é fora de dúvida que os valentes salvadores dos regimes de autoridade, quando os povos lhes dispensam o almofariz e os elixires e carecem de guarida segura, procuram as negregadas, fósseis e rançosas democracias liberais como os únicos cantinhos do mundo onde a polícia a todos protege e se não transformam os homens em cobaias de experiência sociológicas — coisa assaz incomodativa.


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