2. Com a razão nas mãos

E porquê?

A resposta é complexa. Resumindo-a, sem paradoxo se pode dizer que há duas condições primárias e elementares do exercício de uma democracia liberal.

A primeira é a existência de uma oligarquia de dirigentes, isto é, um grupo relativamente pequeno de políticos, selecionados pelo voto dos seus concidadãos à clara luz do jornalismo, dos comícios, da tribuna parlamentar, dos relatórios e colaboração em trabalhos de comissões, da administração pública, etc.

E a segunda é que tal oligarquia de dirigentes, a despeito da diversidade irredutível das tendências políticas de cada oligarca, conserve como traço comum o respeito à Lei fundamental, aos direitos dos cidadãos, à tranquilidade de todos e lute por que o fácil pendor para o Estado de força seja dominado pela ideia difícil de Estado de direito.

Quando um país tem a dita de possuir uma oligarquia de políticos, claros nos propósitos, selecionados e confirmados frequentemente pelo voto de opinião, honrados com o adversário quando lhe chega a hora de governar, o povo vive subtraído às oscilações extremistas das leis do pêndulo e podem chover estrelas ou picaretas que não se abalará a paz interna.

Se esta meia dúzia de homens se desentender, se se deixar atrair pela sereia do mando, tapando os ouvidos à frágil voz do servir, na bigorna da política soa o timbre das espadas, com as quais, como advertia Talleyrand, se podem fazer muitas coisas, salvo sentar-se alguém nas pontas.

Sempre assim foi e será, assim como, pelo contrário, sempre foi e será o diálogo claro e público entre os dirigentes políticos o bastião inabalável da paz civil. Governe a direita, governe a esquerda, o essencial é que, no circuito dos oligarcas, quem governa saiba demitir-se e quem quer o poder saiba esperar.

A Inglaterra e a França conseguiram organizar esta oligarquia, e há, porventura, outro nome para designar aquela pequenina roda de indivíduos, conhecidos de toda a gente, ouvidos em todas as emergências e entre quem se escolhem os dirigentes responsáveis pela política geral?

Na Inglaterra e na França não há a hora dos novos, nem a hora dos velhos; há apenas a hora dos que deram as suas provas ou exprimem a tendência política imposta ou aconselhada pelas circunstâncias e pelo assentimento da maioria, sejam novos, sejam velhos, são dignos de deter o poder político. É que nessa oligarquia não se entra pela escada da juventude, nem se sobe pelo elevador da velhice, e de pouco servem os «Rolls Royce» da fortuna ou os brasões do nascimento.

Sempre renovável, muitas vezes renovada, a mobilidade da sua constituição, sincronizando-a com os movimentos da opinião pública, assegura aos povos a realização de todas as aspirações dentro dos quadros legais.

Por isso estes países desconhecem nos tempos contemporâneos as revoluções, são e serão a coluna vertebral e a cabeça da Europa, e os seus políticos, não sendo nacionalistas nem imolando os povos a teorias, são patriotas, têm ideias, garantem às suas nações a paz interna e o respeito universal, e quando radicais, deixam intato e robustecido o que deve conservar-se e singulariza o espírito e os interesses nacionais.

Basta de divagação pela Lua; volvamos ao tema do Portugal século XX.

O contraste entre democracia e liberalismo é, especulativamente, um assunto magnífico para as academias, para os professores de direito público e para os publicistas políticos. Nunca é de mais a respetiva análise, mas a coisa muda de semblante quando sobre a inocente dissociação teórica se edifica uma oposição concreta, na construção do Estado. Adeus à proporção, adeus à harmonia das linhas, e quase se chega a ter saudades do cubismo, porque Democracia, ou império do sufrágio e igualdade perante o poder, sem Liberalismo, é despotismo puro, e Liberalismo sem Democracia é esmola desconfiada, com freio, bridão e muitíssima ordem, seja dum rei, como no chamado despotismo ilustrado, seja dum ditador paternalista, como por exemplo Porfírio Díaz, no México.

Democracia e Liberalismo são dois elementos diversos, mas absolutamente essenciais na edificação do Estado moderno.

A proporção em que participam do conjunto foi, é e pode ser diferente, não sendo necessário olho de lince para ver, por exemplo, que na Constituição de 1822 predominou o elemento democracia, e na Carta Constitucional, o elemento liberalismo. As duas construções políticas, que deram estilo ao século XIX, já lá vão e não podem ressuscitar. Temos que ser do nosso tempo, mas em que proporção devemos nós portugueses do século XX, lotar os dois ingredientes políticos e preparar as condições do advento de uma nova oligarquia de dirigentes, livremente escolhida?

Eis o problema essencial para nós e para as próximas gerações, a quem devemos poupar as lutas políticas, que por demais têm devastado a Pátria comum.


?>
Vamos corrigir esse problema