3. Sobre a ideia de estado total

I

NOÇÃO DE PARTIDO POLÍTICO

Só o cego da bandurra, teimoso na estafada cantoria, não nota que à sua volta se debatem duas conceções políticas absolutamente opostas: a do Estado liberal e democrático e a do Estado totalitário, pouco importando que este se apelide de fascista, hitleriano ou comunista, porque sob a diversidade de nomes e fins se esconde a identidade de processos e objetivos. Perante a nova oposição, atenuaram-se um pouco as arestas agressivas do velho contraste entre república e monarquia, porque na hora atual não é só o vaso que nos preocupa, mas o licor ou o veneno que nele se lança...

Tão profunda e polar oposição não se deixa aprisionar facilmente; em todo o caso não forçaremos muito as coisas, desfigurando-as, se a exprimirmos por meia dúzia de palavras de significação contrária: partido e massa, cidadão e produtor, personalismo e transpersonalismo.

É boa regra de método começar pelas coisas simples, e destas antíteses a mais simples é a de partido e massa.

Palavras por assim dizer familiares, pois mais ou menos todos distinguimos um partido de uma seita e não confundimos a ideia de massa com a de multidão, porque sabemos que são coisas perfeitamente distintas.

A palavra partido, como os adjetivos patriota e nacional, tornou-se usual no século XIX e creio até que devemos estas palavras aos liberais cartistas.

Se no ponto de vista da história da linguagem avancei uma hipótese discutível e talvez falsa, afigura-se-me claro que só no Estado constitucional a palavra partido cobrou um sentido preciso, significando pela primeira vez uma realidade sentimental e ideológica.

Qual é esse sentido?

Em geral as coisas só se veem bem de fora, mas o leitor não vai ofender-se se o convidarmos a procurar a resposta, instalando-o previamente na intimidade da conceção democrática. A Democracia é a síntese de três ideias diversas, cada uma das quais nasceu independentemente e tem sua história autónoma: a ideia de soberania do povo; a ideia de igualdade de direitos e a ideia da liberdade individual como limitadora do Poder público. Mediante lutas e entusiasmos, que ainda hoje nos transportam, o século XIX estabeleceu um equilíbrio entre estas ideias, o qual pode capitular-se de histórico, isto é, de mais ou menos perimido. As brechas abertas pela contemporaneidade nessa admirável construção política não significam que a Democracia se exauriu como fundamento e ideal da nossa conceção do Estado. Não.

A Democracia é um espírito e não uma coisa concreta, e consequentemente pode revestir formas e combinações diversas sem se imobilizar ou cristalizar num dado equilíbrio histórico dos seus elementos.

As conveniências dialéticas dos seus adversários não coincidem precisamente com a essência da Democracia, e quase sempre se limitam a reabrir a porta que fora aberta pela crítica de democratas.

Deixemos isto para outra oportunidade, e retomemos a ideia de partido.

Na conceção democrática e liberal do século XIX, a qual informa ainda todas as constituições políticas do nosso século elaboradas e votadas nos Parlamentos, parte-se do dualismo Estado e Sociedade.

O reconhecimento das liberdades individuais e públicas, da propriedade, etc., supõe à primeira vista um Estado mais ou menos neutral, que fundamentalmente intervém para corrigir abusos e restabelecer as condições da livre existência ‘e competência entre os indivíduos. Em realidade, as coisas não se passam com a simplicidade da primeira impressão, mas é um facto que no Estado democrático-liberal há uma larga zona de interesses e atividades em que o Estado não intervém senão para restabelecer ou impor o direito pré-estabelecido. O Estado aparece-nos como um organismo limitado, cujos limites são fixados nas Constituições, por forma que toda a gente saiba onde começa e onde acaba o poder do Estado, onde começam e onde acabam os direitos e obrigações dos indivíduos e das corporações.

Como construção, o Estado democrático-liberal representa a mais alta expressão da inteligência política e dos mais delicados sentimentos da convivência e da dignidade humana, e por o ser é que ele sofre naturalmente nos nossos dias o assalto dos instintos em rebeldia e da estupidez compacta, partilhando da adversidade momentânea que assola todas as grandes criações da civilização.

Só na aparência o Estado liberal é neutral, porque de facto ele possui uma vontade, a da opinião pública, representada pelos seus órgãos, do qual os partidos são instrumentos e arautos.

Em teoria e na realidade, o partido é uma organização livre baseada na aceitação e propaganda de uma ou de um sistema de opiniões. Brota da convicção e entendimento entre homens e não do simples acordo de interesses.

Jamais houve um partido imposto pelo poder público ou pela pressão económica, o qual seria a negação do partido, e da mesma forma, numa sociedade repartida apenas em classes, que como tal elegessem apenas os seus representantes, não existiriam partidos políticos, pela razão simples de que não havia vida política: comia-se, dormia-se, faziam-se botas, etc., etc.

É que numa sociedade civilizada — e não há sociedade civilizada sem partidos políticos — os interesses e os ideais políticos não coincidem exatamente com os interesses das classes, como mostraremos, se o leitor estiver disposto à conversa.

II

DIGRESSÃO SOBRE A ALMA BURGUESA

Num Estado de organização democrático-liberal a conquista do poder público por um partido político não significa o acesso ou o triunfo de uma classe social.

Partido e classe, a qual não deve confundir-se com ofício ou profissão, têm de comum, na generalidade dos países democráticos, a não existência oficial, isto é, baseiam-se na opinião e nos costumes, mas são formações sociais diversas, assentando sobre preferências e juízos de valor diferentes. É certo que a classe operária, ou mais precisamente de assalariados, adquiriu nas legislações contemporâneas uma significação jurídica, bastando a circunstância de alguém ser assalariado para a lei lhe assegurar certas regalias, nas quais avulta entre nós o seguro nos acidentes de trabalho.

O advento do conceito jurídico de operário, que é um conceito moderno, brotou das condições sociais e do sentimento da dignidade do trabalho. Em geral, os sociólogos explicam-no pela extensão do industrialismo, que reduziu às mesmas condições pessoais e objetivas milhares de pessoas, pelo regime da economia monetária, que converteu o valor do trabalho em dinheiro, e finalmente pelo contraste do salário com o aumento do nível de vida e complicação das necessidades pela irradiação dos progressos materiais. A explicação é exata, mas ao reconhecer o conceito jurídico de operário a lei não delimitou uma região social, porque atendeu apenas a situações pessoais objetivas.

É que ao contrário da casta, instituição fechada e oficial, a classe é aberta, e se nos extremos do panorama social nosso contemporâneo notamos um fosso quase intransponível entre o aristocrata, que nasce e não se cria, e o chamado «proletário consciente», circunlóquio dissimulador do militante marxista, as separações tornam-se imprecisas na enorme zona intermédia da população, designada em geral por classe média. É a zona que luta infatigavelmente pela estabilidade e segurança pessoal e familiar, e é esta luta, por vezes comovente, que tece a essência da alma burguesa.


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Vamos corrigir esse problema