3. Sobre a ideia de estado total

Há teorias sobre a burguesia, as quais quase sempre a confundem com o capitalismo, e há a realidade sentimental burguesa. São duas coisas completamente distintas; nada têm que ver uma com a outra. O burguês das teorias é um ente histórico, que nasceu no outono da Idade Média, atingiu a plena maturidade no século XIX e muitos dizem com certa razão, ter entrado na decrepitude já nos nossos dias; a sentimentalidade burguesa, uma formação e disposição moral, anterior e superior ao regime capitalista da produção e distribuição das riquezas e satisfação das necessidades.

Da realidade burguesa se pode dizer o que Amiel dizia da paisagem: é um estado de alma. É a conceção suspicaz da vida e a ética do esforço e sacrifício, e para os povos, aldeões como o nosso, de arreigada e tenaz tradição romana e de indestrutível formação cristã, o horror da aventura política e da violência como prima ratio.

A conceção da vida e a ética da sentimentalidade burguesa assentam sobre a aspiração da independência individual e económica, a qual se associa sem sofismas à ideia de propriedade.

Acerca da propriedade, dama dos seus encantos, o nosso burguês de carne e osso não constrói nem construiu nunca nenhuma teoria; para ele a propriedade é a garantia tangível contra a adversidade, é a esperança de poder manter e, podendo, elevar um plano de vida estável pessoal e familiar. Sem dúvida esta moral alimenta o egoísmo nas relações sociais, dá o Tio Goriot e a Eugénia Grandet, quando não, como diz o povo, o «filho fidalgo e o neto ladrão»; mas no íntimo a índole do nosso burguês de carne e osso é altruísta, porque se preocupa acima de tudo com o futuro dos seus. Desconfia do amanhã, dúvida dos outros, gosta de ver os governantes de bigode policial, de barba grisalha, com as unhas cortadas e bolsos pequenos na indumentária severa, acha que a caridade bem entendida começa por nós e porque sabe que ninguém tem a vida nas mãos e as doenças e infortúnios podem reduzi-lo e à família à indigência, torna-se económico, isto é, luta quotidianamente pela tranquilidade do dia seguinte. A carteira de negócios antepõe a propriedade ao luar, às ações de rendimento duvidoso as obrigações de juro certo e garantido, e quando casa as filhas, se é rico ou remediado, pensa nos netos, e se é pobre, exige que o genro tenha emprego e insiste às vezes, não tanto como seria para desejar, que se faça sócio dum montepio ou associação de socorros mútuos.

Se esta é a realidade sentimental da nossa gente, nem só o rico e o remediado são burgueses; são-no simultaneamente o patrão e o empregado, o industrial e o operário, numa palavra, todos os que, não querendo dever favores à assistência pública ou às Conferências de São Vicente de Paulo, por si próprios procuram assegurar pessoalmente e para os seus a tranquilidade contra o amanhã incerto.

Sem paradoxo se pode dizer que no âmago da maior parte das reivindicações contemporâneas de justiça social — direito ao trabalho, salário mínimo, seguro na velhice e enfermidade, acesso à cultura, etc., etc., se esconde o aburguesamento, isto é, o anelo da segurança e da estabilidade. Assim entendida, a realidade burguesa é um estado de espírito que se opõe, no espaço, à vagabundagem, no tempo, à contingência e à surpresa, e que viveu, vive e sobreviverá a todos os regimes políticos e económicos. E sobreviverá, porque os regimes políticos e económicos não têm por fim dar a felicidade pessoal a ninguém.

Podem fazer com que vivamos melhor, com mais higiene e economia e tempo e esforço; podem facilitar o acesso do maior número aos benefícios da civilização e da cultura; podem concorrer para que os povos tenham a alegria de viver e a sensação da justiça e da dignidade pessoal e coletiva; mas todas estas coisas são apenas condições propícias à felicidade, e não a felicidade. A felicidade, se ela existe, é sempre uma criação individual, que cada um tem de esculpir com o escopro do seu entusiasmo ou com a broca da desilusão e da renúncia.

Como propiciar, porém, a felicidade e a justiça ao maior número?

Este é o problema político por excelência, sobre o qual os homens de carne e osso dão respostas diversas, segundo as suas ideias e interesses, sentimentos e aspirações.

III

O SENHORIO DO TEMPO E A CIVILIZAÇÃO

O partido político é uma formação social fluida. Na génese, determinam-no muitas vezes circunstâncias ocasionais, o prestígio de uma individualidade ou o brado de eventos parlamentares, do governo ou da praça pública; e no destino, mesmo quando exprime uma vivaz e consistente mundividência, isto é, uma conceção da vida ou Weltanschaung como dizem os alemães, a sua sorte depende a cada momento dos movimentos de emigração e imigração dos indivíduos alistados sob a bandeira partidária. Toda a gente sabe isto, mas nunca é demais insistir no carácter de resolução pessoal que reveste a saída ou entrada num partido, seja qual for, mesmo nos extremistas, o da reação ultraburguesa ou o da ofensiva marxista, cujas ideologias e táticas partidárias convertem o alistamento em simples acréscimo numérico. Em rigor, não são partidos, são massas; daí, a um tempo, a sua força temível e a sua fraqueza vulnerável, mas não tornemos trepidante o desenrolar da película... Não chegou ainda a altura do Jardim Zoológico, com seus bichos de estufa e da selva; por ele temos de passar para subir ao outeiro donde descobriremos, finalmente, a paisagem primaveril sem o tigre ao fundo. 

A primeira preocupação dos dirigentes partidários não se exerce, porventura, no sentido de manter e afervorar aquelas resoluções pessoais, de provocar o que lhes é favorável e contrariar ou impedir o que lhes é hostil? É evidente que a vida partidária desentranha um curso cambiante de esperanças e de desilusões, de alegrias e aborrecimentos, cujo ritmo depende principalmente da volubilidade da zona neutra dos indiferentes e do espírito dos partidários, isto é, a sua confiança no ideal, na doutrina e na ação do partido.

Triviais estes factos, não é menos trivial a constatação de que os movimentos pessoais no seio dos partidos são incomparavelmente mais rápidos e transitórios que os movimentos de entrada ou saída das pessoas no quadro das classes e profissões.

Por índole, a aristocracia é uma classe fechada. O acesso à nobreza não depende do indivíduo e a saída como que lhe é vedada. O nascimento é a sua única e verdadeira porta de entrada, e qualquer que seja a sorte do ascendente, degrade-se moralmente ou decaia na indigência, o seu herdeiro nem por isso deixa de ser nobre na estimativa vulgar de arvorar os respetivos títulos como atributo que paira sobranceiro às contingências da fortuna. «Fidalguia sem comedoria é gaita que não assobia», diz o povo, mas no íntimo o anexim é falso, porque confunde a qualidade com a ostentação, a pessoa com o adorno, a disposição moral com o poder do dinheiro ou da posição social.

Desta confusão se aproveitou arteiramente a grande burguesia, ou por outras palavras a alta sociedade do século XIX, cuja agonia constitui um dos aspetos do drama do nosso tempo. Eça de Queiroz, a sorrir, instaurou-lhe o processo das insolências e ridículos, e se, forte ainda, a alta-roda pode desdenhar das ironias corrosivas do romancista seu contemporâneo, anos depois o sentimento da dignidade do trabalho e o advento do direito social tornaram-na vazia e inútil. O processo está concluso e preparado para a sentença; e já que nem o político nem o moralista podem evitar-lhe a condenação, só nos resta a atitude compreensiva e compassiva do médico quando ausculta a respiração rouca e anelante do moribundo.


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