3. Sobre a ideia de estado total

Qualquer sociedade, e em cada ciclo da sua jornada, carece da existência de um escol. Pode pensar-se até, e sem torpeza mental, que a civilização é um produto destilado pelo escol — isto é, um círculo reduzido de indivíduos que, libertos da maldição bíblica de ganharem a vida com o suor do seu rosto, têm simultaneamente a disposição de ânimo e o tempo livre para cultivarem umas coisas imateriais e impalpáveis — a Justiça, a Bondade, a Verdade e a Beleza —, sem as quais a Sociedade tem as ventas e o fartum dos rebanhos.

Tempo livre, escrevi, e com efeito é a condição indispensável para que a flor fragilíssima da civilização se não estiole e seque na mente dos homens. A Atenas de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, e a Roma do Direito e da administração pública, isto é, o génio que procura o justo, o génio que devassa o compreender, o génio que disciplina e organiza, foram possíveis porque houve umas tantas cabeças que puderam gozar as delícias de se não distraírem de si mesmas e deixavam em casa uma mulher, espécie de ser adjacente que mandava nos escravos, as máquinas de então, e dava filhos à cidade. Mais tarde, quando o germano guedelhudo e bárbaro e o árabe desdenhoso e fanático nos iam atirando para a selva, foi o frade o único homem que teve o tempo livre, e do seu senhorio do tempo e alívio dos cuidados materiais vivemos ainda hoje uns tantos que não perdemos o sentido das coisas caridosas e ternas e encontramos na letra o primeiro vislumbre do dealbar do espírito.

Depois vieram a dama, apajeada por aias e fidalgos, e o solar do aristocrata, com seus criados e mesteirais, e porque possuíam a terra, vinculada à família, que outros trabalhavam, dispunham do tempo e puderam oferecê-lo ao luxo, isto é, ao desperdício das energias vitais em satisfação de coisas anti ou ultra-vitais, que outra coisa não é o requinte da civilização.

O burguês da alta-roda, no século XIX, quis ser e foi o herdeiro da gloriosa ascendência. Cerremos a cortina da curiosidade de saber porque títulos o foi e como se instalou na herança. Basta-nos atentar no uso que dela fez.

A mais remota vitória que obteve foi a de atirar para as ortigas com o vitupério de traficante. Quis que lhe chamassem mercador e comerciante e conseguiu-o, e depois desta vitória é vê-lo no afã industrioso de conquistar o supremo poder social. Torna-se distinto, isto é, opõe-se às classes laboriosas como então as apelida — a distinção e o chic são palavras de significação puramente burguesa, porque o aristocrata só estimou a graça e o donaire — e edifica todo o seu poderio sobre o capital. Foi o capital que lhe permitiu, como o escravo ao grego e ao romano, a cerca ao frade e a terra ao nobre, ser senhor do tempo e desperdiçá-lo em benefício da civilização.

[ IV ]

REFLEXÃO SOBRE A UNIVERSIDADE

Chegou a hora do juízo sereno, e nós que estamos aqui para fazer política construtiva e para convidar as mentes a que pensem as coisas segundo os nossos princípios morais e políticos não podemos ouvir com indiferença um brado de alerta sobre o lúgubre porvir do nosso ensino superior.

Iludir os problemas é habilidade de prestidigitador, que não do político, cujo ofício lhe impõe, prévia e precisamente, a visão clara da realidade dos factos e o cálculo prospetivo da sua incursão pelo futuro.

Pode acontecer que os factos se apresentem revestidos duma luxuriante vegetação de bolores e de fungos, mas como o crítico político não faz observações botânicas é-lhe vedado trocar a realidade substantiva dos factos pelas excrescências acidentais e adjetivas do seu exterior.

O caso nu e cru é que a atenção pública foi atraída recentemente para o estado atual da Universidade, por obra e graça da representação que os universitários de Coimbra dirigiram ao ministro da Instrução, que, ao contrário daquele burro que o cigano levou à feira, o qual sabia ler mas não pronunciava, deu ensejo a que houvesse alguns escritos e pronunciações sem leitura. Não a assinando cumpri o meu dever, com a naturalidade e a facilidade de quem respira normalmente. Coisa tão fácil nada tem de heroico, e portanto, como a respiração, não dá motivo a elogio ou a vitupério. E a razão é simples.

Os desembargadores podem subscrever a sentença proposta pelo relator e discordar dos fundamentos alegados, mas os professores de filosofia não podem isolar a conclusão das premissas. Têm por obrigação ser lógicos e coerentes até à excentricidade solitária de Maria não ir com as outras.

Estes brincos e galanteios querem dizer que julgo ter sido consequente comigo mesmo e com o meu dever profissional, tanto mais que não posso decorosamente ter orgulho de coisas que não sinto, mas os meus colegas que assinaram a representação cumpriram também um dever. Eles denunciaram ao país a peçonha que envenena o nosso ensino superior e ao mesmo tempo expressaram uma opinião sobre o destino da Universidade.

Examinemos serenamente, no ponto de vista de Robinson, o diagnóstico e a opinião.

A atual organização universitária, que data fundamentalmente de 1918, é duma voracidade insaciável. Ela devora o tempo, a coisa mais preciosa da escolaridade de mestres e estudantes. Ter tempo livre, desperdiçá-lo em curiosidades problemáticas, invertê-lo em leituras fatigantes e praticamente inúteis, aplicá-lo na indagação e na porfia de ideias e de factos, são condições vitais do exercício do magistério e da formação do homem, que jaz potencialmente no estudante.

Sempre que inicia a lição, o professor arrisca o seu crédito moral. Uma lição mal feita, a escamoteação das dificuldades, a acrobacia de palavras e a versatilidade dos juízos subvertem numa hora, e para sempre, o crédito junto dos auditores. Por isso, o prestígio dos professores é como o respeito pelo pudor das mulheres: uma vez perdido não se recupera.

Para propiciar o volátil ambiente moral da cátedra a lei concede aos professores universitários a liberdade de poderem faltar algumas vezes sem justificação, e tal liberdade é o reconhecimento público da necessidade do tempo e da fragilidade do magistério. Simplesmente, a organização atual, repleta de cadeiras e de cursos e servida por um pequeno quadro de professores, destrói de facto o que reconhece em teoria.

Dizem-se e explicam-se em cinco minutos os resultados de muitas horas laboriosas, e a verdade triste e incontestável é que o professor, que só quer ser professor, não usufrui hoje as longas horas disponíveis.

Percorra-se com espírito equânime o plano de estudos de algumas, senão de todas as Faculdades, e a peçonhenta verdade da carência de tempo livre, para mestres e estudantes, surgirá com profunda evidência. Atirado de uma cadeira para outra cadeira, de um curso para outro curso, das aulas teóricas para as aulas práticas, o professor é inexoravelmente compelido à burocratização do magistério, ao ensino fácil e à repetição — coisas terríveis para mestres e alunos.

Para mestres, porque lhes cerram o intelecto à imaginação criadora e os converte em provincianos do Espírito. E para os estudantes, porque lhes geram a sensação de que a aprendizagem não exige o esforço diário e a ciência é como os frutos maduros, que estão acolá à espera de quem os colha.


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Vamos corrigir esse problema