A Teoria da Verdade e do Erro nas Disputationes Metaphysicae de Francisco Suárez

Francisco Suárez, «grande luminar da ciência teológica» e «a quem os sábios de todo o Mundo veneraram e veneram como um dos mais notáveis representantes da ciência sagrada e profana», na expressão do meu sábio mestre Dr. António de Vasconcelos, que à sua memória de professor insigne ergueu um monumento de erudição e investigação histórica, que sobremaneira honra a cultura portuguesa, vincou também inconfundivelmente a sua individualidade de pensador no movimento de restauração escolástica dos séculos XVI e XVII, que, em grande parte, foi uma criação do Génio Espanhol e Português. Interessando-nos apenas o aspeto filosófico da sua obra, recorremos especialmente ao De anima (póstumo, 1625) e sobretudo às Disputationes Metaphysicae (1597), cujo sucesso foi enorme e onde se suscitam e renovam, com base em Aristóteles e São Tomás, todos os velhos problemas, mas incessantemente novos, que por largos séculos se debateram na Escola. E assim é que o seu génio universalizador, que nos domina pelo vigor da conceção e rigor do raciocínio, se não furtou à sugestão atormentadora, mas fecunda, dos problemas epistemológicos, oferecendo-nos, em potência sempre, quando não em ato, uma solução aos problemas da origem, condições, limites e certeza do conhecimento humano.

Nós, porém, desta teoria do conhecimento apenas queremos destacar o problema da verdade e do erro, que na economia da sua síntese tem uma particular importância, pois a verdade representa a suprema finalidade metafísica.               

I

Suárez, que define aristotelicamente a metafísica como a ciência do ser enquanto ser, com São Tomás admite que a unidade, a verdade e a bondade são os atributos ou passiones do ser, e que nesta ordem lógica devem ser expostos, pois se por um lado a verdade pressupõe a unidade, porque só o uno em si ou como tal considerado pode ser assimilado pelo espírito, por outro a bondade pressupõe a verdade, porque nada pode ser bom na sua espécie, a menos que em si seja verdadeiro, — doutrina que fundamentalmente é o desenvolvimento do princípio intelectualista, nihili volitum nisi cognitum. Ë, pois, logicamente, que na disputatio VIII expõe a sua teoria da verdade entre a unidade e a bondade.

Sob que ponto de vista, porém? A verdade, diz, pode considerar-se materialmente ou in actu exercito, isto é, enquanto se conhecem as coisas na sua existência objetiva e formalmente ou in acta signatu, isto é, investigando como é que a verdade existe nas coisas.

Sob o primeiro aspeto a verdade tanto existe nas ciências práticas como nas especulativas, embora mais propriamente nestas; sob o segundo, porém, Suárez admite a tripartida divisão da verdade in essendo, ou transcendental, que constitui propriamente objeto da metafísica, cognitionis, formal ou lógica, e in significando, isto é, a veracidade, ou seja a conformidade da expressão com a coisa significada.

A disciplina do seu método impunha-lhe uma definição prévia da verdade; e, por isso, aceitando a fórmula do misterioso Isaac, referida, preferida e portanto valorizada, por São Tomás, entendia que a verdade é a conformidade do intelecto com o seu objeto (adaequatio rei et intellectus).

Na sua aparente clareza esta fórmula envolve tantas dúvidas e suscita tantas dificuldades, que Tomás de Vio (1469-1534), o Cardeal Caetano, nos seus tão justamente célebres Commentari à Summa Theologica não receou afirmar- “obscuritatem magnam in hac materia ponit, scilicet quod veritas est conformitas intellectus et rei...».

No sentido de a precisar e esclarecer, Suárez observa que ela pressupõe uma dupla relação: do intelecto cognoscente para a coisa conhecida, e desta para o intelecto cognoscente, aquela sendo expressa pela verdade cognitionis, formal ou lógica, e esta pela verdade in essendo, transcendental, metafísica ou objetiva, que, como veremos, é o próprio ser da coisa.

Por isso logicamente começa por analisar a verdade cognitionis, já para precisar o seu conceito, já para melhor caracterizar a verdade transcendental, que constitui propriamente o objeto da disputatio.

II

A Escola unanimemente postula que a verdade existe na composição e divisão do intelecto, porque por estas operações se afirma ou não existir alguma coisa tal como se julga.

Que espécie de verdade é esta e quais os termos da conformidade, a forma da relação, que a fórmula — adaequatio rei et intellectus —aplicada à composição e divisão do intelecto pressupõe?

Esta questão foi vivamente debatida pela teoria que Durando de Saint-Pourçain, o Doctor resolutissimus, e com Auréolo o iniciador do terminismo de que- mais tarde Ockam foi o venerabilis inceptor, sustentou nos Commentarii super Sententias Theologicas Petri Lombardi, renovada na época de Suárez, por Gabriel Vasquez 16, seu insigne opositor. Durando, aceitando a fórmula de Isaac, entendia que a adaequatio não podia existir entre o conceito formal e o objeto por dissemelhantes: aquele subjetivo, este material. Havendo conformidade, ela só pode ser representativa, isto é, existindo apenas entre o conceito objetivo, ou seja a realidade concebida pelo intelecto no objeto, e o próprio objeto. Demais, se a verdade é objeto do intelecto e por consequência de juízo, a conformidade deve existir no objeto e não no conhecimento, porque quando o intelecto afirma ou nega a verdade não julga a conformidade subjetiva do seu ato, mas a verdade do próprio objeto.

Em oposição a esta doutrina, o Doctor eximius, com São Tomás e os seus mais sagazes comentadores e fiéis discípulos como Tomás de Vio, Silvestre de Ferrara, Egídio Romano, Soncinas, etc., justamente entende que a adaequatio na verdade lógica é a conformidade do juízo à coisa conhecida tal como é em si, já porque é a opinião de Aristóteles, já porque não é possível a comparação que Durando pressupõe, porque uma coisa quando verdadeiramente conhecida não tem outro ser objetivo além do que tem em si e portanto a realidade que se atribui ao conceito objetivo é idêntica à realidade que existe no objeto.

Comprova ainda esta conclusão o facto de na verdade in significando se dizer que uma expressão é verdadeira quando conforme ao conceito que exprime e não porque o conceito ou o seu objeto são verdadeiros em si, além de que juízos há, como os possíveis, em que o conceito não tendo existência objetiva, claramente que não pode existir a adaequatio interpretada no sentido de Durando.

Para Suárez, pois, o espírito possui a verdade quando devém igual a realidade e o conhecimento que da realidade forma não a altera nem a cria, mas simplesmente a reproduz e exprime, por forma que a realidade conhecida não adquire pelo facto do conhecimento senão «uma denominação extrínseca». Por isso, a verdade não é, como entendia Durando, a adaequatio entre a coisa in esse cognito e a coisa in esse reali porque não há dois termos, mas apenas um. Este raciocínio, que aparentemente parece um truísmo, é fundamental na sua teoria do conhecimento, porque se a coisa pelo conhecimento apenas adquire uma «denominação extrínseca» é porque possui sobre o ato de conhecimento uma prioridade de natureza e portanto contraditório seria que este ato constituísse o seu objeto.

Mas se a verdade conceptual (cognitionis) é a conformidade do intelecto com o seu objeto, que natureza tem esta conformidade? É absoluta, relativa, real ou racional, ou tão-somente conota que o objeto é como o representa o conceito e o juízo afirma?

Não era, pois, sem razão que o Cardeal Caetano prevenia o leitor das dificuldades em explicar cabalmente a fórmula de Isaac...

Suárez lucidamente esclarece esta questão  distinguindo a significação própria da verdade, do que esta acrescenta ao ato verdadeiro, convindo advertir neste último que a verdade se pode atribuir duplamente ao ato de conhecimento: formaliter e radicaliter, — aquele constituindo a conformidade do conhecimento com o objeto, esta a perfeição do ato verdadeiro, como a evidência na ciência ou a certeza na fé, e pela qual se considera a conformidade como infalível e necessária.

Como é óbvio, a atribuição radicaliter interessa propriamente à posse da verdade e ao seu assentimento, enquanto que a atribuição formaliter respeita ao problema formulado.

Abordando-o desde já, o Doctor eximius entende que a verdade não acrescenta ao ato verdadeiro um modo absoluto, distinto da essência do objeto, pois que nem se compreende o que seja, nem para que sirva este absoluto. Com efeito, não pode ser uma perfeição essencial do próprio ato de conhecimento, porque todos os juízos seriam necessariamente verdadeiros e consequentemente impossível o erro, nem tão--pouco acidental, porque o ato de conhecimento subsistindo intrinsecamente o mesmo pode devir de verdadeiro, falso, pela mudança no seu objeto. Em oposição a esta doutrina, que parece ser defendida por Soncinas, outros, como Durando, Javellus, etc., que Suárez cita, sustentam que a verdade consiste apenas numa relação, porquanto depende de tal modo do termo que a exprime que mudando este surgirá o erro, — como Aristóteles reconheceu ao afirmar que a mesma proposição pode devir de verdadeira, falsa  -, divergindo, todavia, na determinação da natureza desta relação, pois enquanto uns a consideram como real, outros como racional, não falta quem, ecleticamente, a afirme ora real, ora racional.

Suárez, porém, sustenta que a verdade não acrescenta ao ato uma relação real, porque em muitos juízos é impossível por falta de objeto, como nos juízos sobre o não-ser, e mesmo quando aquele existe, a relação só surge depois de reconhecida a verdade e portanto o conceito formal da verdade não envolve a existência duma relação real ; nem tão-pouco uma relação racional, porque então o juízo poderia considerar-se como verdadeiro conceptualmente quando o espírito concebe atualmente a conformidade e compara o seu próprio ato com o objeto representado.

Mas é evidente que, independentemente de tal comparação e conhecimento, o juízo é e subsiste verdadeiro enquanto não há mudança no seu objeto. A verdade, pois, nada acrescenta real e intrinsecamente ao próprio ato, mas unicamente conota que o objeto é como o conceito o representa e o juízo afirma.

Existirá, porém, a verdade com este carácter em todas as operações intelectuais? São Tomás, e com ele quase toda a Escola, afirma que a verdade formal (cognitionis) rigorosamente (proprie loquendo) existe só pela composição e divisão.

E bem se compreende que assim seja, porque se por um lado é a opinião de Aristóteles, por outro se admitíssemos esta verdade nas meras representações mentais (in simplicibus conceptibus), a lógica —contrariorum eadem est ratio— forçar-nos-ia a concluir que nelas também poderia existir o erro, o que, como veremos, é impossível. Demais, se a verdade não existe in vocibus, como o erro in significando, senão quando os termos se dispõem sob a forma duma proposição (oratio complexa) em que se afirme ou negue a sua conveniência recíproca — e é nisto que consiste a composição e divisão do intelecto —, se, portanto, as palavras apenas são sinais dos conceitos, não deve, porventura, reconhecer-se que só pelo juízo existe a verdade cognitionis, em que se afirma que o objeto é como se julga? Opinião contrária, porém, sustentavam dentre outros, que Suárez cita, Ferrara, Soncinas, Egídio Romano, o prestigioso, mas tão pouco estudado, Pedro da Fonseca, que, mais particularmente este último, baseando-se na doutrina aristotélica de que os sentidos são verdadeiros no conhecimento dos sensíveis próprios  e que in simplicibus conceptibus existe a verdade porque as coisas são conhecidas pela sua qualidade própria, concluía que «veritatem non solum consistere in compositione et divisione intellectus, sed etiam in simplici rerum aprehensione».

Demais, se tudo o que é conforme e adequado à sua causa é verdadeiro, nas representações mentais existirá a verdade cognitionis, visto que nelas também existe a conformidade com o seu objeto e causa.

Apesar de divergentes, estas duas opiniões parecem poder harmonizar-se numa síntese eclética em que se reconheça a existência da verdade tanto nas perceções e conceitos, como nos juízos, assumindo, porém, nestes um carácter próprio e diferencial. A existência da verdade in simplicibus conceptibus não pode negar-se, não só pela ponderosa autoridade do Estagirita e de São Tomás, como pelo senso comum, porque se estes conceitos exprimem certas qualidades ou coisas, se estas, como veremos, são verdadeiras, em última análise a verdade que nelas existe é a própria verdade das coisas, isto é, a verdade transcendental (veritas in essendo) ; e muito menos no juízo, porque, além das citadas opiniões, também o senso comum reconhece possuir-se um verdadeiro conhecimento quando se afirma pelo juízo a existência ou não existência duma coisa ou propriedade, além de que, como veremos, se o erro só existe quando o intelecto compõe ou divide, a verdade também por essa forma deverá existir, — contrariorum eadem est ratio, —embora dum modo especial. É justamente na explicação deste modo especial que reside a dificuldade e tanto assim que várias soluções se podem formular. Com efeito, uns, imprecisamente, contentam-se em dizer que a verdade complexa se encontra só na composição e divisão, e a incomplexa nas simples representações ou conceitos; mas é claro que isto nem explicação chega a ser.

Outros, baseando-se em Aristóteles, opinam que in simplici notitia só, em rigor, existe a verdade e nunca o erro, enquanto que na composição e divisão indiferentemente se pode dar a verdade ou o erro. Mas esta solução nem resolve a dificuldade, nem tão-pouco esclarece o citado lugar de Aristóteles, pois que pela vaga expressão da indiferença da composição e da divisão se não precisa o carácter próprio desta verdade. Por isso, mais preciso será dizer que a verdade e o erro se atribuem especialmente à composição e divisão do intelecto, pois que por estas operações julgamos ou não verdadeiramente, o que se não dá in simplici notitia. Contudo, uma vez mais, não basta dizer que a verdade existe dum modo especial...

Suárez, eliminando sucessivamente estas doutrinas, termina por expor a de São Tomás, à qual sem restrições, mas esclarecendo-a, adere: a verdade, rigorosamente, existe no intelecto componente e dividente e não nas simples apreensões, pois conhece a conformidade entre a coisa e o juízo e, como disse o Doutor Angélico, «... conformitatem istam cognoscere, est cognoscere veritatem».

Este lugar é interpretado por alguns comentadores como significando que a verdade subjetivamente tanto existe no juízo como nas simples apreensões, mas objetivamente só naquele —, interpretação que Suárez rejeita, já por contrária a Aristóteles e São Tomás, já porque só pela composição ou divisão reflexa se conhece a adaequatio, que constitui a verdade formal (cognitionis).

Podemos, pois, afirmar que Suárez distingue na veritas cognitionis, a verdade formal ou lógica, da material: naquela o intelecto conhece a conformidade do juízo com o objeto, nesta simplesmente a possui, sem se pronunciar sobre a adaequatio das suas representações. Isto não obsta, porém, a que na simples ideia ou imagem exista a verdade, porque sendo representativas, ou melhor presentativas, da essência das coisas, com ela devem ser conformes; todavia, como o intelecto só pelo juízo conhece a sua conformidade com o objeto, a verdade formal só neste existe, e não, como poderia discutir-se, na vis intelligendi ou na simples apreensão.

A verdade formal, portanto, fundamentalmente pressupõe a comparação dum sujeito com um atributo, pela qual se afirma ou nega a sua conveniência recíproca — comparação que o intelecto opera compondo ou dividindo — e, por isso, a verdade igualmente existe nestas duas operações, isto é, tão verdadeiro é o intelecto conhecendo a conformidade, como a desconformidade.

Existirá esta conformidade só in intellectu speculativo ou também in practico?

À primeira vista parece impor-se uma resposta afirmativa porque o real sendo a medida da verdade cognitionis só a scientia especulativa por ele será mensurada, enquanto que na scientia practica, como a ética e a estética, se dá o contrário, pois o pensamento é antes a medida das coisas.

A existência da scientia practica importa um complexo de verdades que a constituam e visto que in intellecto practico se dá o erro, — contrariorum eadem est ratio, — o Doctor eximius, com Aristóteles  entende que a verdade não só existe no intelecto speculativo como no practico, enquanto este possui o conhecimento das coisas agendarum ou efficiendarum. Dir-se-á, porém, que a verdade exprime sempre uma relação mensurati ad mensuram...

Mas Suárez observa que nem este pressuposto falta, porque o conceito practico é comensurado pelo objeto em razão da sua essência, e não da sua existência. Desta forma, pois, não há uma diferença substancial entre a scientia speculativa e practica.

III

Assim a verdade existe no juízo; existirá também nas coisas como uma propriedade, um atributo? Aceitando-se a fórmula de Isaac como definição da verdade, a res dir-se-á verdadeira quando adequada a uma representação mental ou juízo, constituindo o intellectus o termo primário e fundamental da relação que a fórmula envolve, ou porque o intellectus lhe é conforme, e então a res tem sobre o ato de conhecimento uma prioridade de natureza. O primeiro termo da disjuntiva não pode aceitar-se, justamente porque a verdade no intelecto está condicionada pela existência ou não existência da coisa e por outro lado seria reincidir no erro dos antigos filósofos, como Protágoras, que sustentavam que nada é verdadeiro senão pela compreensão. Não sendo possível formular outra hipótese, Suárez, com São Tomás, logicamente conclui, de que a verdade é uma propriedade do ser, um transcendental, ou mais rigorosamente, idêntica ao ser e com ele convertível: verum et esse convertuntur, e não, como poderia pensar-se o próprio ser. Como a verdade cognitionis, a verdade transcendental denota a adaequatio do ser com o intelecto; porém, naquela, dá-se a conformidade do intelecto com o ser como objeto de apreensão ou de juízo, enquanto que na última existe a conformidade atual ou atitudinal do ser com o intelecto.

Por isso, naturalmente, surge o problema de determinar a natureza desta conformidade e o que seja esta verdade que se atribui ao ser e com ele convertível. Soncinas e outros comentadores, que Suárez cita, interpretavam-na no sentido da verdade transcendental significar uma propriedade real e absoluta, separável pela razão.

Suárez nesta teoria, como nas que referiremos, subtilmente distingue o que a verdade in essendo pressupõe, do que acrescenta ao ser. Sob o primeiro ponto de vista, esta verdade, de facto, exprime uma perfeição real do ser, e neste sentido se deve entender o citado lugar de São Tomás; sob o segundo, porém, que é propriamente o objeto da disputatio, francamente rejeita a interpretação referida, como já rejeitara a opinião de Scoto sobre a possibilidade do ser ter atributos distinguíveis formalmente, entendendo que a verdade transcendental nada acrescenta de real ou absoluto, mas tão-somente denota uma adaequatio atual ou atitudinal, do ser com o intelecto, isto é, que o ser forma ou é capaz de formar uma equação com o pensamento. Esta é também a doutrina de São Tomás, donde claramente resulta que o ser pode conceber-se sem a verdade, enquanto que esta necessariamente pressupõe em si própria o conceito de ser.              

Da mesma forma Suárez repudiava a teoria de que a verdade ontológica importava uma relação real, ou racional, porque em Deus, que é a medida da verdade in essendo, como esta é o da verdade cognitionis, é impossível a existência duma relação, pois que toda a relação, seja real, seja racional depende dum termo — dependência que, como é óbvio, não pode existir em Deus.

E nem mesmo no ser criado é possível, pois que deveria ter por termo correlativo ou as ideias divinas ou o intelecto finito e, num caso, como noutro, Suárez prova não ser possível tal relação.

Importará, porém, uma negação? Assim, pensava Aureolo, dizemos que um objeto é de verdadeiro ouro, quando não é aparente ou falso, e daqui concluímos à natureza própria do ouro: por isso, a verdade unicamente acrescenta ao ser a negação da ficção ou carência das suas propriedades. Evidentemente esta singular opinião é abertamente contrária ao senso comum, que considera a verdade como uma perfeição positiva, além de que não explica o erro, que, como veremos, sendo o contrário da verdade, é uma negação. Opinião diferente, mas que Suárez igualmente rejeita, sustentou o Cardeal Caetano, o subtil comentador da Summa Theologica, entendendo que a verdade ontológica só existia por «denominação extrínseca», derivada ou da verdade divina, de que são sinais ou cópias, ou do intelecto humano, enquanto são ou podem ser causa dele, e de tal modo que se este não existisse as coisas não se poderiam dizer verdadeiras. Suárez cuidadosamente distingue nesta teoria uma dupla interpretação: ou a verdade transcendental denota a concomitância de alguma coisa extrínseca, ou só por «denominação extrínseca» se diz verdadeira.

Interpretada no primeiro sentido, Suárez concorda com o Cardeal Caetano; mas como tudo leva a crer que teve em vista a interpretação posterior, o Doctor eximius critica-a por expressamente contrária ao pensamento de Aristóteles e São Tomás, e igualmente tornar a verdade in essendo predicável dos seres reais e racionais ou lógicos (v.g. como o género, espécie, etc.).

Demais, se a verdade transcendental é uma passio entis, intrinsecamente conexa com o ser e com ele convertível, logicamente se torna inadmissível esta doutrina, porquanto a verdade não seria então um atributo transcendental, pois que à propriedade ou «denominação extrínseca», por sua natureza, convém ao ser acidentalmente e ab extrinseco.

Suárez, porém, reconhecendo a dificuldade de formular uma solução amplamente satisfatória, inspirando-se em São Tomás, entende que a verdade transcendental intrinsecamente denota a entidade real do ser, conotando-a com o conceito que o intelecto dessa entidade forma ou pode formar. Esta conformidade atual ou conformabilidade (atitudinal) do ser com o intelecto, em que a verdade ontológica formalmente consiste, refere-se primariamente ao intelecto divino e secundariamente ao intelecto humano, sendo que a inteligência divina é a medida da verdade ontológica no ser finito  (scientia Dei est causa rerum), como este é a medida da verdade conceptual no intelecto humano. Por isso, todo o ser é verdadeiro e por sua natureza inteligível.

Desta forma, bem se compreende que Suárez, com São Tomás, preferisse a fórmula de Isaac — veritas est adaequatio rei et intellectus, às definições de Santo Agostinho, Santo Anselmo, Avicena, etc., pois duplamente exprime a verdade cognitionis e a verdade in essendo, consoante se entender por intellectus a inteligência humana ou a inteligência criadora.

A verdade existe, pois, nas coisas e no conhecimento; em que ordem ou relação? Tal é o último problema que Suárez formula, e cuja solução importa, por assim dizer, a origem histórica da atribuição da verdade.

A opinião geralmente aceite, que remonta a Aristóteles, passando por São Tomás, é que a verdade primo ac praecipue existe na mente e secundario nas coisas, muito embora se possa sustentar o contrário, pois a verdade supõe-se preexistir ao ato  intellectus, e por consequência existirá prius in rebus. Deixando os respetivos argumentos, que Suárez longamente aduz e discute, pois diretamente nos interessa a sua opinião, o Doctor eximius começa por notar que num juízo concorrem duplamente a verdade transcendental e a verdade conceptual ou formal (cognitionis). Existe a verdade transcendental, porque o juízo, sendo um ato intelectual e portanto uma entidade real, é, como qualquer outro ser, transcendentalmente verdadeiro ; e, igualmente, a verdade formal, porque afirmamos a existência real de alguma coisa —afirmação que, apesar de acidental, constitui, como já dissemos, a característica fundamental e diferencial desta verdade cognitionis.

Estabelecida e provada esta distinção, Suárez defende a doutrina que a verdade primariamente se atribui a este modo especial da verdade cognitionis, que existe pela composição e divisão, pois quando se dá corretamente, o juízo diz-se verdadeiro, como quando falta, falso, muito embora, num caso como noutro, exista a verdade transcendental, no sentido acima indicado. Daqui, resulta, pois, que as coisas conhecidas se dizem verdadeiras secundariamente.             

Não se pense, porém, que isto significa que a verdade ontológica só exista por «denominação extrínseca», pois uma coisa é verdadeira quando o intelecto lhe é conforme ou conformável. Deste modo, a trans lação da verdade cognitionis para a verdade in essendo pressupõe uma proportionalis analogia, visto que se aquela requer a conformidade entre a essência da coisa e o juízo, também a verdade transcendental pressupõe que a entitas rei possa adequar-se ao juízo ou às simples representações mentais.           

Em resumo, Suárez, com São Tomás, entende, pois, que a verdade per posterius in rebus est, per prius autem in intellectu.               

IV

O erro é para Suárez, como para São Tomás, o contrário da verdade; por isso, se contrariorum eadem est ratio, devia formular os mesmos problemas que formulou sobre a verdade, para melhor precisar o seu conceito. Assim, logo no início da Disputatio IX investiga se o erro se deve atribuir às coisas, se conceptibus simplicibus intellectus ou se, em rigor, apenas se dá no juízo pela composição e divisão.           

Suárez, seguindo o pensamento comum da Escola, unicamente atribui ao erro uma existência lógica, e não ontológica, porque nenhuma coisa em si própria pode ser falsa.    

Com efeito, se compararmos as coisas em relação à inteligência divina, tanto especulativa como prática, quer em si própria, quer pelas causas segundas, não podem própria ou impropriamente ser falsas, pois este erro importaria uma desconformidade com as ideias divinas, que provaria em Deus, ou ignorância, porque não soube realizar as suas ideias, ou uma impotência, porque não as realizou — o que num caso como noutro é impossível. É certo que se objetava que na natureza existem monstros; mas Suárez responde que derivam duma deficiência das causas segundas e enquanto representam uma realidade correspondem às ideias divinas.  

Dir-se-á, porém, que podem ser falsas em relação ao intelecto criado... Mas a mesma conclusão se impõe, porque é da essência das coisas o poderem ser conhecidas verdadeiramente e se por vezes isso se não dá, o erro provém do intelecto, e não duma causa intrínseca e inerente às coisas. Relativamente ao intelecto practico, as coisas, como as produções artísticas e os atos morais, podem, é certo, dizer-se falsas; mas é óbvio que esta falsidade é analógica ou metafórica, porque rigorosamente aquela expressão indica antes que a vontade se não guiou pelas ideias de beleza ou de justiça, e por isso com mais propriedade se chamarão aquelas imperfeitas e estes maus. É evidente, pois, que o erro não é positivo, isto é, exprima uma realidade intrínseca das coisas, muito embora, per accidens, às vezes se lhes atribua; portanto a raiz desta atribuição, derivará do espírito, que não das coisas, e explicá-la, é indicar, como faz São Tomás e com ele Suárez, os vários modos porque uma coisa se pode chamar falsa.

O mais vulgar, e esse de observação corrente (maxime usitatus) depende duma falaz semelhança com uma coisa verdadeira, como quando se toma o aurichalcum por ouro, em virtude da qual se pensa ou afirma o que não existe, embora por vezes derive também dum juízo impossível  ou falso, que apenas tem existência subjetiva (quod tamen objectum est objective tantum in intellectu) e finalmente da desconformidade duma coisa com as regras eficientes (non est adaequata, vel conformis arti), que, como notou São Tomás, se dá particularmente in rebus arte humana factis.

O erro tem, pois, a sua raiz no espírito; instrumentalmente, porém, em que operações? Será no juízo, ou in simplicibus conceptibus? Suárez entende que o erro rigorosamente só se dá no juízo, e não nos conceitos simples, porque não podem ser desconformes com o seu objeto.

Dir-se-á, porém, que São Tomás, com Aristóteles, admite que os sentidos erram sobre os sensíveis comuns e, acidentalmente, sobre os próprios....

Mas é óbvio que uma representação mental é impropriamente falsa, pois que esse pretenso erro só existe quando o intelecto a refere a um objeto com o qual não é conforme, isto é, quando forma um juízo. Os conceitos simples, embora em si não tenham um erro próprio, podem contudo provocá-lo, dando lugar a uma atribuição desconforme ou, o que é o mesmo, a um juízo falso; neste sentido, pois, se deve interpretar o referido lugar de São Tomás.        

Desta forma, o erro existe só pelo juízo, ou, como diz Suárez, pela composição e divisão, pois que, por ele, o intelecto atribui ou não uma propriedade a um objeto, pronunciando-se sobre a sua conformidade, e bem pode acontecer que esta atribuição não exista realmente tal como se julgou: daí a desconformidade e, portanto, o erro. Assim, o erro não se pode generalizar às simples apreensões, quer dos sentidos, quer do intelecto, porque sendo simplesmente representativas, ou antes presentativas, nada afirmam ou negam sobre o seu objeto ; nem tão-pouco denota uma relação própria, real ou racional, ou uma «denominação extrínseca», porque o erro é tão-somente uma imperfeição do intelecto. Será porém convertível com a ignorância? Esta é apenas a ausência de conhecimento, e o erro, conquanto praticamente devenha ignorância, é todavia alguma coisa mais, importando sempre um juízo que afirme o que não existe ou negue o que existe, enquanto que a ignorância é pura de qualquer afirmação.        

Não são, pois, convertíveis, porque se todo o erro é ignorância, nem por isso a ignorância é erro. São Tomás afirmando que o erro e a verdade se opõem contrariamente, logicamente nos leva à conclusão de que o erro não existe nas coisas e só analogicamente, como aos conceitos simples, se lhes pode referir, do mesmo modo que nos explica a natureza e forma dessa oposição, que deve recair sobre o mesmo juízo, sobre o mesmo objeto e ao mesmo tempo. Por isso um juízo não pode simultaneamente ser verdadeiro e falso, muito embora de verdadeiro devenha falso, quando cessem estas condições. Admitirá o erro graus? Afirmativamente respondia Suárez, pois que assim como uma proposição se diz mais verdadeira do que outra, pelo seu fundamento ou porque tem «uma conformidade mais infalível com o seu objeto», da mesma sorte se dirá um juízo mais ou menos falso.      

V

A origem do erro pode discutir-se teológica e filosoficamente, pois o erro e a verdade são dois aspetos diferentes dum mesmo problema: o problema do pecado é a forma teológica do erro, como o do erro a forma filosófica do pecado. Sob o primeiro aspeto, que não desenvolvemos, unicamente diremos que Suárez entende que o pecado original não introduziu erros no espírito humano, mas antes o privou da virtualidade de o evitar ; por isso, naturalmente surge o problema filosófico de saber se esta deriva dum princípio interno, inerente ao homem, se externo. Existindo o erro só pelo juízo, ou por uma compositio judicativa, logicamente se impõe a análise dos processos da sua formação, isto é, das vias do conhecimento, para surpreender a sua génese. Dupla é a via dum juízo sobre as coisas ou da aquisição dum conhecimento: a invenção (inventio) e a pura aceitação (doctrina, seu disciplina). Na doctrina o juízo baseia-se na autoridade e daí o erro, pois quem diz ou ensina alguma coisa pode errar ou mentir; na inventio o juízo deriva de representações pessoais e próprias, e a única explicação admissível para o erro é a liberdade, porque se o intelecto é compelido para a verdade pela evidência, isto é, a clara inteligibilidade do objeto, que não pode provocar juízos falsos ou conhecimentos erróneos, porque se funda na própria essência das coisas (fundatur in re ipsa cognita prout est in se) ou se integra em principia per se nota et manifesta, se o erro existe, claramente só pode dever a sua existência a um ato voluntário.

E assim é que por ele se explica a persistência do juízo verdadeiro, contrariamente ao falso, essencialmente mutável, justamente porque lhe falta a evidência, que é uma coação intelectual. Dir-se-á, porém, que uma causa extrínseca, como Deus ou um anjo mau, pode coagir o intelecto ao erro, sugerindo-lhe uma evidência aparente... É certo que Deus o poderia fazer, mas não menos certo é que o não faz, pois, como unanimemente dizem os teólogos, non minus hoc ejus bonitati repugnat, quam mentiri, e a hipótese do anjo mau é completamente inadmissível.     

Por isso, não é legítimo interpretar a evidência aparente num sentido positivo, isto é, necessitando o intelecto, já pela razão exposta, já porque envolve uma contradição nos termos; porém, se por essa expressão significarmos a precipitação do intelecto em virtude da qual se atribui uma realidade ao juízo que ele de facto não pode ter poderá admitir-se, pois a evidência não será então uma necessidade simpliciter, além de que manifestamente pressupõe uma influência da vontade. Mas como é possível que o intelecto aceite a evidência aparente, assim interpretada, por uma evidência objetiva?

Suárez responde, dizendo que o intelecto nem sempre concebe as coisas pelas suas espécies próprias, já em consequência duma imperfeita apreensão dos sentidos, já por uma viciosa composição ou divisão, isto é, um raciocínio ou juízo contrário às leis formais do pensamento. A resposta envolvia, pois, uma enumeração das causas do erro, que, pela sua complexidade, provam a grande dificuldade em atingir a verdade; por isso, logicamente surge o problema da raiz desta dificuldade, que Aristóteles abordou na Metafísica, analisando mesmo a tese sofística da impossibilidade de atingir a verdade. Suárez, profundamente dogmático, referindo apenas esta opinião, analisa exaustivamente, histórica e metafisicamente, aquele problema.

Scoto, e com ele outros filósofos que Suárez cita, postulando a cognoscibilidade per se de todas as coisas, referiam-na à imperfeição do intelecto humano, enquanto que Heráclito, na opinião de Pedro da Fonseca, a atribuía às próprias coisas, materiais ou espirituais, visto que não produziam adequadamente no intelecto humano as suas espécies próprias. Suárez, porém, ecleticamente e com São Tomás, Alberto Magno, etc., que cita, afirma que esta dificuldade deriva em parte das coisas, em parte do intelecto: nas coisas inferiores, e por consequência pouco inteligíveis, a dificuldade provém da sua própria imperfeição; nas superiores, resulta, como é óbvio, da deficiência do intelecto. Em conclusão: a verdade sendo una, o erro é múltiplo, e consequentemente difícil, mas não impossível, a posse da verdade.           

Concluindo, podemos, sem a atraiçoar, resumir a doutrina exposta nas seguintes proposições:             

I. A verdade é a conformidade do pensamento com o seu objeto.        

II. A verdade conceptual (cognitionis) pode considerar-se material ou formalmente.  

III. A verdade conceptual material existe nas simples apreensões e consiste na simples conformidade das representações com o objeto representado, identificando-se com a verdade ontológica.          

IV. A verdade conceptual formal existe propriamente pelo juízo (composição e divisão) e consiste na conformidade consciente do conhecimento com o objeto representado. Esta verdade constitui rigorosamente a verdade lógica e unicamente denota a conformidade do juízo com a coisa julgada, isto é, do conhecimento com o objeto.

V. A verdade ontológica é um atributo transcendental e consiste na conformidade ou conformabilidade do ser com o intelecto. Exprimindo a entidade do ser, conota um intelecto que a possa conhecer e por isso formalmente pressupõe a inteligibilidade do ser, isto é, sendo capaz de causar no intelecto um conhecimento conformável.

VI. A raiz da verdade ontológica é o intelecto divino.

VII. A evidência é o criterium da verdade.

VIII. O erro é a desconformidade do conhecimento com o objeto representado, existindo rigorosamente apenas no juízo.

IX. As perceções sensíveis não são propriamente falsas, embora o erro se lhes possa atribuir analogicamente.

X. Não existe o erro ontológico.

XI. A raiz do erro encontra-se na imperfeição da inteligência humana.

XII. O princípio metafísico do erro é o não-ser.

Tal é, em síntese, a doutrina de Suárez, cujas premissas serão discutíveis, mas que, aceitando-se, lógica e necessariamente importam as conclusões. Nem umas nem outras queremos discutir, já que procedemos mais como intérprete, do que como crítico. Todavia, não devemos deixar de salientar a sua origem tomista, que constitui precisamente um dos seus maiores méritos, porque alia, em regra, à fidelidade do discípulo, a independência do crítico. Por isso, parece-nos mais que discutível a existência do suarismo como síntese filosófica autónoma, muito embora numa ou noutra questão, num ou noutro aspeto, se afaste de São Tomás, designadamente, na teoria do conhecimento, sobre a doutrina do intelecto ativo e passivo.              

Suárez foi verdadeiramente o último grande Doctor, e pelo seu ecletismo, método, rigor e subtileza, vive e perdura na sua obra toda a Escola; por isso, bem se compreende que Descartes e Spinoza o meditassem e da sua obra extraíssem «abundante y de subidos quilates, aquel oro que Leibniz reconocia en la escolastica», como disse o insigne Menéndez y Pelayo.Dir-se-á, talvez, tão dogmático, que nem sequer aflora o problema da possibilidade da verdade, tão intelectualista, que o universo devém um silogismo em marcha, do mesmo modo que postulando a evidência como princípio criteriológico, não explica nem distingue a verdade do erro; mas insuficiências essas, se assim se podem chamar, que deram ao filósofo uma solução a todos os problemas, e ao crente o supremo prazer de tudo considerar sub specie aeternitatis.               


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