III. Conceções pedagógicas de Clemente de Alexandria, de São Jerónimo e de Santo Agostinho

Para o cristão, a educação não podia visar somente a ilustração do espírito nem a formação do cidadão prestante ao Estado; tinha de corresponder diretamente às exigências da crença e de eliminar as diferenças e de superar o contraste dos preceitos religiosos com os ensinamentos morais e históricos das escolas pagãs de Gramática e de Retórica. A reflexão pedagógica brotou e constituiu-se, assim, como consequência imperativa do proselitismo cristão e intimamente vinculada à sistematização doutrinal da «Patrística», expressão que designa a atividade literária dos «Padres da Igreja» nos primeiros seis séculos da nossa era. Ocorrem, por isso, nas páginas dos Padres da Igreja, mormente nas dos que se ocupam das relações da Filosofia com a Fé e da cultura pagã com o Cristianismo, considerações várias de carácter pedagógico; não obstante, atentaremos somente nos escritos de Clemente de Alexandria, de São Jerónimo e de Santo Agostinho, mais diretamente consagrados a temas da educação.

Clemente de Alexandria (n. c.150-220), filósofo platónico convertido ao Cristianismo por São Panteno e a quem sucedeu na direção da escola catequética de Alexandria, que aliás reorganizou e desenvolveu, defendeu e aplicou a conceção de que a literatura grega devia ser utilizada no estudo da teologia cristã. Os seus escritos como que obedecem ao propósito de encaminharem gradualmente para a vida cristã: o Protréptico, por um lado, exorta e, por outro, declara a insensatez das doutrinas religiosas pagãs; o Pedagogo, ensina a neófitos os preceitos da vida cristã, e os Strommata instruem acerca da verdade da revelação cristã.

O Pedagogo, que está dividido em três livros, é o escrito que mais importa ao nosso objeto. Nele se exprime a ideia de que há um só mestre, que é a Palavra de Deus, isto é, o Verbo ou Logos, porque só ela é fonte da Verdade e, portanto, da educação. A sua missão educativa é de «pedagogo» quando encaminha para a virtude (Logos pedagogo) e de «mestre», quando ensina a verdade (Logos didáscalo). Esta conceção do Verbo como fonte e mestre único da verdade teve por consequência, na mente de Clemente de Alexandria, o sincretismo da cultura pagã e da hebraico-cristã, e, portanto, a unidade do mundo cultural, pois tudo o que os homens souberam e sabem por verdadeiro procede exclusivamente do Verbo. Além desta conceção, o Pedagogo contém ainda, nos Livros II e III, um conjunto de reflexões e de preceitos relativos à criação e ensino das crianças, e ao procedimento dos mestres, os quais devem conjugar a bondade com a justiça e o rigor.

A importância desta obra, que é o primeiro escrito que na literatura patrística fundamenta doutrinalmente uma didática cristã, consiste, principalmente, em considerar a Virtude como antecedente e pressuposto da Verdade — o que implica a conceção de que o ensino moral deve preceder o intelectual, ou explicativo —, e em "admitir, como consequência do sincretismo cultural, que a instrução helenístico-romana servisse de preparação ao estudo da Filosofia e esta, por seu turno, introdução, ou propedêutica, ao estudo da Teologia. Esta conceção, que teve antagonistas, foi desenvolvida por outros Padres da Igreja, designadamente Orígenes e Santo Agostinho.

São Jerónimo (331? - 420), de poderosa influência na linguagem latino--cristã pela versão das Escrituras, deixou nas suas epístolas o testemunho do vigor do seu pensamento e da riqueza dos seus dotes literários. Pertence-lhe a singularidade de se ter ocupado, pela primeira vez na literatura pedagógica, da educação feminina, designadamente nas seguintes epístolas, das quais se diz que Erasmo, no século XVI, sabia de cor: Carta a Leta sobre a educação de sua filha Paula e Carta a Gaudêncio sobre a educação da menina Pacátula.

Nestas cartas expõe observações sobre o carácter infantil, formula preceitos e defende a ideia, inspirada em Quintiliano, de que a primeira educação se deve fazer de modo atraente e que a aprendizagem da leitura se faça brincando, mediante a utilização de letras de madeira ou de osso. Recomenda a emulação, os louvores e as recompensas como estímulo da atividade discente e insiste sobre a influência decisiva dos primeiros hábitos. As primeiras leituras deviam ser os Salmos, os Provérbios, o Eclesiastes, o Livro de Job, seguindo-se-lhes os outros livros do Antigo e do Novo Testamento, as obras de São Cipriano e as cartas de Santo Atanásio e de Santo Hilário; quanto à leitura poética, Paula, a educanda, devia começar pela poesia grega, passando depois à latina. O espírito da educanda deve estar sempre ocupado; quando o não prenda a atividade propriamente intelectual, devem as mãos empregar-se em serviços de agulha e de costura.

O ascetismo é a nota característica do ideal educativo de São Jerónimo: se o fim supremo é a bem-aventurança, outra não pode ser a missão da educação. Por isso, o ascetismo se apresenta na sua conceção sob duas formas que se completam: o ascetismo físico, ou seja a frugalidade do passadio e a austeridade dos jejuns e mortificações, de modo que se afastem e vençam os apetites da sensualidade; e o ascetismo moral e intelectual, mediante a vida recolhida, de oração, de meditação e de estudo, fora de todos os estímulos que possam concorrer para despertar ou avivar a imaginação sensível.

Santo Agostinho (354-430), cujo génio exerce contínua influência e cujas Confissões são um livro imorredoiro, ocupou-se também de temas pedagógicos e tem o seu nome ligado à fundação de uma comunidade (convictório) destinada à formação eclesiástica, em Hipona, que é como que a origem mais remota dos seminários diocesanos. Toda a vasta obra de Santo Agostinho, assim como a sua extraordinária atividade de pensador, de apologeta, de sacerdote e de organizador, teve em vista o magistério cristão, no sentido amplo da palavra. A sua reflexão recaiu, por isso, sobre dois assuntos: o âmbito da cultura cristã, o que levou ao exame da relação da formação cristã com a cultura pagã; e o problema da possibilidade e da natureza do magistério.

No primeiro destes assuntos, a sua posição esclarece-se com a distinção entre sapiência e ciência. Para Santo Agostinho, o saber tem por fim a libertação interior, a compreensão e a beatitude, mas o único saber que liberta, compreende e beatifica é o da sapiência, que é o saber que se alcança quando o espírito considera Deus como critério do conhecimento e da conduta. Na sapiência, os conhecimentos são entendidos pela correlação da compreensão lógica com a iluminação da fé, numa concatenação que conjuga harmonicamente os fundamentos e as consequências das verdades. «Intellige ut credas; crede ut intelligas» (Vê claro em tudo o que existe, para que possas crer; crê, para que possas ver claro em tudo o que existe), é o lema da filosofia agostiniana, o qual orientou a filosofia medieval e confere à reflexão filosófica a função primacial de compenetrar especulativamente os dados da Fé. Na Ciência, pelo contrário, os conhecimentos têm por objeto o mundo sensível e quem os considera sob o ponto de vista da imanência e como fins em si mesmo não alcança o verdadeiro saber. Mediante esta distinção, de larga influência ulterior, a formação cristã podia assimilar, depurando-a, a cultura pagã, visto o conhecimento das coisas sensíveis e humanas se subordinar à Sapiência. Consequentemente, a aprendizagem das artes liberais do ensino pagão tinha somente préstimo instrumental, na medida em que o respetivo conhecimento servisse de subsídio ao saber teológico e à meditação da revelação contida na Escritura. Esta conceção foi decisiva, orientando o ensino eclesiástico ulterior.


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