I. As invasões dos bárbaros e a ruína das instituições escolares romanas. Compilações didáticas dos séculos V e VI

Durante os primeiros quatro séculos da nossa era, as escolas pagãs mantiveram nas principais províncias do Império romano, principalmente na África do Norte e no Sul da Gália, o ensino dos dois ciclos de Gramática e de Retórica, mais ou menos de harmonia com o plano de estudos que Quintiliano expusera na Instituição oratória e adquiriu carácter oficial quando os imperadores chamaram a si a direção do serviço docente. Este ensino afastava o espírito dos conhecimentos práticos e das questões de fundo científico e moral para lhe transmitir uma cultura geral literária e para o exercitar no virtuosismo verbal, que se tornou, aliás característica dominante da literatura da época imperial e confere aos Romanos a responsabilidade inicial no declínio do espírito e das atividades científicas, a que o génio grego se havia aplicado.

Os cristãos, designadamente Santo Agostinho no De doctrina christiana, censuravam-lhe a indiferença pelos problemas do destino humano, mas não podiam opor-lhe instituições próprias que ministrassem o ensino do curso público, o qual veio a criar as primeiras raízes, no século IV, com as escolas monásticas. Orígenes abriu uma escola de Gramática (202-203), mas o exemplo parece não ter frutificado, pois em vez de escolas públicas de fundação cristã com mestres cristãos se deu antes a entrada de mestres cristãos nas escolas públicas pagãs, de todos os graus de ensino. O édito de Juliano o Apóstata, de 362, proibindo a cristãos o exercício do magistério, mostra a generalização desta atividade e parece indicar o propósito da confessionalidade da escola, obstando a que os deveres públicos do súbdito fossem contrariados pelos da consciência religiosa cristã.

As invasões de Germanos, de Vândalos, de Hunos, de Godos, e de outros bárbaros, iniciadas por 450, determinaram a queda do Império Romano do Ocidente em 476, e com ela a decadência do ensino, assim no número das escolas como no teor das matérias de estudo, e, por fim, a extinção da própria organização cultural tradicional.

Ao contato da civilização romana ou romanizada, os invasores, mal saídos do primitivismo, deixavam o espetáculo dos horrores, das depredações e das ruínas e, sobretudo, estancava o curso das atividades culturais e civilizadoras. O pensamento civilizado e civilizador, que se exprimia no Ocidente pela língua latina, cujas palavras nada diziam aos seus ouvidos, sofreu o embate de povos, que mal ensaiavam os primeiros passos no caminho da civilização e que ao receberem o influxo cultural dos vencidos lhe mutilam e alteram o sentido, mas gerarão um mundo novo, que levou tempo a construir-se e que se organizou sob a influência da Igreja.

No Império Romano do Oriente, que ruiu em 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos, o regime e o ideal educativo mantiveram a estrutura clássica; no Ocidente, porém, as escolas de Gramática e, principalmente, de Retórica e de Direito, passaram a arrastar uma existência apagada e difícil até se extinguirem os seus derradeiros ecos pelos meados do século VI. Nas províncias mais romanizadas, o descalabro da organização escolar operou-se mais lentamente, produzindo-se como que o trânsito das instituições docentes romanas para as que estruturariam o ensino medieval. Na Itália, apesar do insucesso, é significativa a tentativa de Cassiodoro (470-562?), no reinado do ostrogodo Teodorico (493-526), no sentido da reorganização dos estudos tradicionais em coordenação com as exigências cristãs, porventura o derradeiro esforço para reanimar a tradição cultural da civilização greco-romana; e São Bento fundou em 529 o mosteiro do Monte Cassino, lançando as bases de uma organização que serviria de norma e cuja atividade docente se tornaria característica da alta Idade Média.

Na Gália, os derradeiros ecos das escolas romanas prolongam-se até ao princípio do século VI, em cujo decurso, aliás, se tornou tão sensível a ausência de mestres e a decadência da instrução que Gregório de Tours escreveu (c. 576) no prefácio da História dos Francos ser difícil encontrar quem soubesse Gramática e Dialética.

Na Península Ibérica, o Breviário de Alarico, de 506, omite os títulos e leis do Código de Teodósio referentes a mestres e escolares, o que tem sido considerado como prova do desaparecimento das escolas oficiais. Do grau de decadência dos conhecimentos no Ocidente é indício o passo da carta do bispo de Poitiers e poeta Venâncio Fortunato (n. c. 530) a São Martinho de Dume, no final do século VI, em que louva o «silogismos» e os «epiqueremas» de Virgílio. Conservavam-se as palavras, mas perdera-se o seu significado real.

A ruína da organização docente romana não foi seguida, paralelamente, da obliteração total dos conhecimentos que ela transmitia. Cessou, por alguns séculos, a consulta direta dos monumentos e das fontes dos conhecimentos literários e, principalmente, científicos, obra do génio grego e a que o génio romano não conferiu interesse real; não obstante, o fundo instrutivo das escolas de Gramática e de Retórica transitou, em boa parte, principalmente os daquelas, para manuais e compilações didáticas dos séculos V e VI, graças às quais se operou como que uma ação mediadora da cultura antiga e se estabeleceram as bases do ensino cuja evolução culminou com o quadro de estudos das sete artes liberais e com a constituição das Universidades no século XIII. Tais são os escritos de Marciano Capela, de Boécio, de Cassiodoro e de Prisciano.

Marciano Capela (princípio do século V), pagão, foi autor de um manual de feição enciclopédica tido ulteriormente em apreço, intitulado De nuptiis Philologiae et Mercurii et de septem artibus liberalibus libri IX. Sob a ficção do casamento, no Olimpo, de Mercúrio com a Filologia, personificação do saber, Marciano Capela faz comparecer perante a assembleia dos deuses, apresentadas por Febo, sete aias da noiva, cada uma das quais expõe sucintamente a disciplina que representa, ou sejam a Gramática, a Dialética, a Retórica, a Geometria (mais propriamente a Geografia ou descrição da Terra), a Aritmética, a Astronomia e a Harmonia, isto é, a Música. Cada uma das aias apresenta-se com objetos simbólicos. A Gramática, por exemplo, que é dada como filha de Menfis, traz num prato instrumentos para desembaraçar a língua das crianças.

O cânone das «sete artes», apresentadas como «disciplinas cíclicas» e com sentido sistemático, foi mais tarde repartido em dois grupos: o «trívio», com as três disciplinas das letras, e o «quadrívio», com as restantes, de feição científica.

Mânlio Severino Boécio (475? - 524), considerado o último romano, exprime intelectualmente o sincretismo clássico-cristão. Foi cônsul no reinado de Teodorico, que o incumbiu de organizar um plano de restauração dos estudos e, mais tarde, o destituiu e mandou encarcerar. Dos seus escritos, além da divulgadíssima Consolação da Filosofia, redigida na prisão, importa notar principalmente as traduções e comentários à Isagoge, de Porfírio, e a de alguns livros do Organon, de Aristóteles, designadamente o Das Categorias e o Da Interpretação, bem como os manuais didáticos de Aritmética (De institutione aritmetica, baseado em Nicómaco de Jerasa), de Música (De institutione musica) e de Geometria (De Geometria, baseado nos Elementos de Euclides). Os seus escritos filosóficos concorreram poderosamente para o estabelecimento da terminologia latina do vocabulário aristotélico, v.g., as palavras actus, potentia, species, principium, universale, subiectum, etc., que entraram no património escolástico e nas línguas românicas. Os seus manuais, com serem elementares, contribuíram também para que se não perdesse, na alta Idade Média, o conhecimento das matérias de que se ocupavam, principalmente as Instituições de Aritmética e de Geometria, que serviram de texto ao ensino destas disciplinas do «quadrívio».


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