II. A Igreja e as novas bases do ensino

A exigência da formação do clero, agravada pela inexistência de seminários e pela extinção das escolas romanas, determinou o desenvolvimento da instituição de escolas na sede de bispados, que por tal se designam comummente de catedrais ou episcopais; pouco vulgares anteriormente ao século

VII, não devem ser confundidas com o conjunto de subordinados e de familiares dos bispos e que os documentos dos séculos V e VI designam por scola. Assim, os sacerdotes de uma sé formavam a scola do respetivo bispo, sendo «escolásticos» os clérigos que a constituíam.

O plano de estudos das escolas catedrais não divergia, sensivelmente, do das escolas monásticas, compreendendo rudimentos da cultura profana do trívio e conhecimentos litúrgicos e teológicos; o quadro docente também era reduzido, pois o ensino era ministrado pelo próprio bispo, ou, como se tornou normal, pelo seu delegado, o primicério ou mestre-escola (Magister scholae ou scholasticus), quase sempre o chantre; a frequência era gratuita e constituída por adolescentes que iniciavam o estudo das primeiras letras e os pais destinavam à vida eclesiástica ou se recrutavam dentre órfãos e abandonados.

Do interesse votado à difusão destas escolas, cuja origem é controvertida e cuja existência se tornou como que normal a partir do século VIII, são significativos o segundo (527) e o quarto (633) concílio de Toledo, recomendando o ensino «na casa da Igreja», sob a direção imediata dos bispos e que aos dezoito anos os escolares optassem pelo sacerdócio ou pela vida secular

Com a organização das paróquias, a partir principalmente do século VI, surgem as escolas paroquiais, com sede no presbitério; o ensino ministrado pelo cura, de objetivo religioso e litúrgico, era muito elementar.

O segundo concílio de Vaison, em 529, determinou que os curas recebessem no presbitério, como leitores, rapazes, a fim de os educarem cristãmente, de lhes ensinarem os Salmos, a Escritura e a Lei do Senhor, em ordem à preparação para o ofício eclesiástico e, eventualmente, para o sacerdócio. O concílio de Mérida, de 666, reiterou estas resoluções.

A conexão que estas escolas estabeleceram entre o ministério sacerdotal e o magistério elementar desenvolveu-se ulteriormente, por forma que, historicamente, significam o aparecimento da escola rural, que o mundo antigo desconhecera, pois o ensino na Grécia e em Roma foi caracterizadamente urbano.

Durante o período que estamos considerando não se produziu, propriamente, literatura pedagógica, mas há escritos de significação cultural e didática em que importa atentar. Tais são alguns livros de São Martinho de Dume, de Santo Isidoro de Sevilha, que Bardenhewer considera dos últimos Padres da Igreja, e de Beda o Venerável.

São Martinho, natural da Panónia (Hungria), que havia estado no Oriente, onde vestiu o hábito de monge, chegou por 555 ao reino dos Suevos, no noroeste da Península, o qual compreendia o território da Galiza e o da Lusitânia até ao Tejo. Bispo de Dume, no primeiro concílio de Braga (572) e metropolita de Braga, no segundo concílio (580) desta cidade, singulariza-o o apostolado, que concorreu para a conversão ao Catolicismo do ariano Teodomiro, rei dos Suevos, o zelo religioso, manifestado em várias fundações, designadamente o mosteiro de Dume, próximo de Braga, onde instituiu escola, da qual pouco se sabe, e a sua atividade literária, acentuadamente moralista, de leitor e imitador de Séneca, que não enciclopédica, como a sua época prezava e, de certo modo, exigia. Sob o ponto de vista pedagógico importa notar o seu De correctione rustico rum (Da instrução dos rústicos), de resposta a Polemo, bispo de Astorga, que, para satisfação de uma resolução do segundo concílio bracarense, lhe pedira um informe acerca da ação episcopal na extirpação de práticas idolátricas. O De correctione rustico rum indica, por isso, as superstições e práticas idolátricas em voga nas populações rurais e, de passo, expõe compendiosamente o que mais importa à doutrinação catequista nas aldeias.

Na multíplice atividade de Santo Isidoro de Sevilha (570-636), importa acentuar a ação do impulsionador do ensino e a obra do escritor mais diretamente relacionada com as exigências docentes. Sucessor de seu irmão mais velho, São Leandro, na sé episcopal e na direção da escola de preparação de sacerdotes, que funcionava nos arredores de Sevilha, Santo Isidoro dedicou o melhor dos seus cuidados e reflexões à restauração da vida eclesiástica. A escola catedral de Sevilha tornou-se famosa; os estudos tinham a duração de quatro anos, sob a direção imediata do primicério, representante do bispo. O magistério de Santo Isidoro ultrapassa, porém, a lição oral, porque também ensinou mediante a correspondência epistolar, notadamente com São Bráulio, de Saragoça, as advertências e conselhos, designadamente aos reis Sisenando e Sisebuto, e, principalmente, com os seus livros, que exerceram extensa influência durante a alta Idade Média.

É em função da formação e da ilustração que a obra isidoriana adquire sentido, designadamente, com os Libri duo differentiarum (o De differentiis verborum e o De differentiis rerum), o De natura rerum, que é um compêndio de conhecimentos relativos à Física, no sentido largo do termo, e muito principalmente com os Originum sive Etymologiarum libri XX, designado resumidamente de Etymologiae. Obra capital de Santo Isidoro e de extraordinária consulta durante a Idade Média, pela variedade enciclopédica de conhecimentos que proporcionava, as Etimologias são assim designadas por exporem os conhecimentos a propósito de cada etimologia, aliás frequentemente fantasista. Recolhem palavras e dão definições longe e fora do intuito literário ou da sugerência estética. Os vinte livros que constituem a obra, têm a seguinte ordem, muito significativa do teor e da sistematização dos conhecimentos: I - Da Gramática; II - Da Retórica e Dialética; III - Das quatro disciplinas matemáticas (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia); IV - Da Medicina; V - Das leis e dos tempos, crónica concisa da História universal até ao ano de 627; VI - Dos livros e ofícios eclesiásticos; VII - De Deus, dos anjos e das ordens dos fiéis; VIII - Da Igreja e seitas diversas; IX - Das línguas, gentes, reinos, milícias, cidadãos e afinidades; X - De alguns vocábulos, breve dicionário etimológico de 600 palavras; XI - Do homem e dos monstros; XII - Dos animais; XIII - Do Mundo e suas partes; XIV - Da Terra e suas partes; XV - Dos edifícios e dos campos; XVI - Das pedras e metais; XVII - Da agricultura; XVIII - Da guerra e dos jogos; XIX - Dos navios, edifícios e vestes; XX - Das provisões e dos instrumentos domésticos e rurais.

O livro das Etimologias tornou-se umas das fontes informativas mais prestantes da atividade intelectual em relação com o ensino na alta Idade Média, até ao século XII, e o labor de Santo Isidoro de Sevilha, um exemplo incitante. Assim, na Inglaterra, o movimento de reorganização e de recuperação intelectual teve em Beda o Venerável (672/673-735) a sua figura proeminente, cuja ação na cultura anglo-saxónica do século VIII representa como que o equivalente da de Santo Isidoro na cultura hispânica, no século VII. O seu pensamento foi influenciado pelas conceções isidorianas, cujos escritos Beda teve frequentemente presente para se apoiar e seguir, designadamente no De rerum natura. Sem embargo, Beda o Venerável alcançou significação própria, não apenas como autor da Historia ecclesiastica gentis Anglorum, mas também como mestre, nas escolas dos mosteiros de Wearmouth, de Iarrow e, porventura acidentalmente, na de York, e como compilador de obras didáticas, designadamente De metrica arte, De schematibus et tropis e De ortographia.


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