III. Carlos Magno. A difusão do ensino como elemento de unificação religiosa e política. Alcuíno e Rabão Mauro

Nos três séculos que medeiam entre a queda do Império Romano do Ocidente (476) e o começo do reinado de Carlos Magno (768), a atividade docente foi obra da Igreja, que a exerceu em ordem à preparação de sacerdotes e às necessidades da vida eclesiástica e religiosa; tê-la considerado objetivo do Estado, assentando a estruturação do ensino na orgânica docente eclesiástica, constitui um dos rasgos mais salientes do reinado de Carlos Magno (768-814), autêntico patronus Ecclesiae e, mais do que rex, ou herói guerreiro, imperator, isto é, chefe de Estado e organizador.

Com efeito, com a coroação deste monarca em Roma, em 800, como representante do Sacro Império Romano, o ideal teocrático da respublica christiana afirmou-se não somente como conceção política, mas também como conceção do sentido da cultura, a qual, aliás, nas condições sociológicas da época, somente com o apoio da Igreja podia ser organizada, quer como forma ordenadora da vida, quer como sistema de valores e de saberes, quer ainda como organização e disciplina da atividade docente. Considerando-se princeps populi christiani e restaurador da tradição imperial romana, Carlos Magno pretendeu que a unidade política do seu vasto império, constituído por populações de diverso grau de civilização, se prolongasse na unificação da cultura mediante a unidade religiosa, pelo que promoveu a atividade docente da Igreja, impôs a todos os mosteiros a unidade de observância da regra beneditina e se considerou, como expressivamente declara numa epístola (795) ao papa Leão III, obrigado a defender a Igreja de Cristo, no exterior, com as armas, contra as incursões de pagãos e as devastações de infiéis, e no interior, fortalecendo-a pelo conhecimento da fé católica. O cetro do monarca congregava, a um tempo, os interesses da Igreja e os do Estado.

Este objetivo político-religioso, contemporâneo, aliás, da reorganização das forças espirituais dos impérios árabe e bizantino, somente podia efetivar-se recorrendo à organização do ensino eclesiástico, único ensino então existente, e, consequentemente, mediante a difusão da cultura ministrada pelo clero, cuja capacitação docente e cuja ilustração apareciam como exigência social, dado o alto funcionalismo se recrutar na classe eclesiástica, e como condição da elevação intelectual dos próprios povos. Como expressivamente escreveu Ferdinand Lot, «o que se chama 'renascença carolíngia' não é mais do que um plano de aperfeiçoamento do clero e, mediante o clero, dos fiéis» (em Naissance de la France).

A execução deste plano assentava pedagogicamente na difusão da instrução eclesiástica, em ordem à unificação dos diversos povos do império mediante a unidade religiosa e a conformidade de ideias e dos elementos culturais da língua latina e dos rudimentos sobreviventes do saber antigo; por isso, Alfredo Weber (História da Cultura) atribui à grande obra de unificação e de consolidação política de Carlos Magno a origem próxima do mundo ocidental, e S. d'Irsay (Histoire des Universités, I) condensa o ideal docente carolíngio, que prevaleceu até finais da Idade Média, na síntese expressiva de «ensino pela Igreja e para a Igreja», em contraste com o da Roma imperial, que havia sido o do ensino do Estado e para o Estado, ministrado com sentido laico.

A situação intelectual que o monarca encontrava à data da sua ascensão ao trono (768) não lhe facilitava, porém, a efetivação deste intento. O clero da França nascente não produzira um Santo Isidoro de Sevilha nem um Beda o Venerável, e o seu grau de cultura era, de modo geral, inferior ao do clero da Itália, da Península Ibérica e, principalmente, o da Irlanda e da Inglaterra. Não faltavam sacerdotes ignorantes dos rudimentos da leitura da escrita, que recitavam de ouvido e rotineiramente os ofícios litúrgicos. Por isso, Carlos Magno iniciou a obra de reorganização do ensino estimulando a cultura e a elevação intelectual dos que «deviam ensinar e pregar a lei de Deus» (Capitular de 769) e atraindo à sua corte e colocando à frente de bispados e de mosteiros eruditos, letrados e mestres. Assim, dentre outros, chamou de Itália Pedro de Pisa, gramático, Paulo Warnefried, também chamado Paulo Diácono, poeta, mestre de grego e primeiro comentador da Regra de São Bento, Paulino de Aquilea, teólogo e poeta, e Alcuíno, que encontrara em Parma, erudito e mestre reputado da escola monástica de York, que exerceria poderosa influência intelectual; da Espanha visigótica, Agobardo, que chegou a Lyon em 792, onde foi ordenado sacerdote (804), e Teodulfo, que foi bispo de Orleans (antes de 798); e da Germânia, Eginardo, seu futuro biógrafo.

Passando do plano governamental para à atividade particular, o próprio monarca, que em criança não havia sido instruído nas letras e não aprendera a escrever, deu o exemplo; como refere Eginardo, na Vita de Carlos Magno, ouvia com agrado a leitura de relatos históricos e das páginas da Cidade de Deus, de Santo Agostinho, e seguira, aliás com medíocre resultado e já avançado na idade, as lições de Gramática, dadas Pelo diácono Pedro de Pisa, e das demais disciplinas, por Alcuíno (depois de 781), «o homem mais sábio que então existia» e que lhe explicou a Retórica, a Dialética e, sobretudo, a Astronomia, de particular curiosidade do monarca. Na sua correspondência e na de Alcuíno encontram-se as referências que mais importam às suas curiosidades teológicas e científicas.

Como dissemos, Carlos Magno não introduziu inovações na orgânica das instituições escolares, pois a sua ação educativa, expressa em cartas e noutros diplomas oficiais designados de «capitulares», consistiu, fundamentalmente, em dar incremento à organização existente. Assim, recomendou a fundação de escolas catedrais, monásticas e paroquiais, promoveu a elevação do respetivo ensino e ordenou a correção de textos que corriam deturpados em más cópias.

Dos vários documentos de objetivo docente tem particular importância a epístola a Baugulf, abade do mosteiro de Fulda, e a capitular de 23 de Março de 789, conhecida por Admonitio gene ralis.

Na epístola a Baugulf, que já tem sido considerada a «Carta da educação da Idade Média» e cuja data é incerta, atribuindo-se geralmente a 787, dizia-lhe ter recebido escritos provenientes de mosteiros com ideias justas mas expressas em linguagem bárbara, pelo que receava que o desinteresse pela escrita se continuasse no desinteresse pela compreensão correta da Sagrada Escritura. Por isso, o exortava a não descurar o estudo das letras, em ordem a que melhor e mais facilmente se compreendessem os mistérios das Sagradas Escrituras, convidando-o ao mesmo tempo a enviar cópia da epístola aos seus sufragâneos e a todos os mosteiros.

Na Admonitio generalis, Carlos Magno exprime votos e manifesta determinações. Assim, quer que as autoridades eclesiásticas atentem na fides et vita dos ordinandos; recomenda a arcebispos, bispos e abades de mosteiros que cuidem do ensino e aos sacerdotes que ensinem a ler, chamando a si não somente adolescentes de condição servil mas também os filhos de homens livres; e determina que nas escolas monásticas e nas dos bispados se ensinassem os salmos, as notas, isto é, o solfejo, o canto, o cômputo, isto é, o essencial para a organização da folhinha eclesiástica, e a gramática, e que se atentasse na correção cuidada dos «livros católicos», expressão equívoca, mas que se refere, como parece mais plausível, à fidelidade do texto dos Salmos e dos livros litúrgicos.


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