III. Carlos Magno. A difusão do ensino como elemento de unificação religiosa e política. Alcuíno e Rabão Mauro

Os misi dominici, ou delegados oficiais, tinham poderes para visitar os mosteiros e inspecionar o cumprimento das determinações régias; assim, uma capitular de 805 prescreve que eles atentassem nos seguintes assuntos: «de lectionibus : de cantu : de scribis, ut non vitiose scribant : de notariis : de caeteris disciplinis : de computo: de medicinali arte». Esta última referência às matérias de ensino indica que a Medicina figurava no quadro de estudos de alguns mosteiros.

Na intenção de Carlos Magno, as escolas catedrais e monásticas podiam cultivar e ensinar as disciplinas das artes liberais, mas cumpria-lhes ministrar o ensino elementar que a capitular prescrevia, franqueando-o a quem o quisesse frequentar, porque o seu objetivo devia ser o da preparação de futuros sacerdotes, seculares e regulares; por isso, o plano de estudos, inicial e fundamental, consistiu na «sanctae religionis conversatio», ou seja a aprendizagem do ler, do entoar e do salmodiar, em ordem ao acompanhamento correto do ofício divino. Assim, na escola do mosteiro de São Riquier, o abade Angilbert decidiu que se ministrasse a cem adolescentes o ensino da leitura e do canto, dividindo-os em três grupos que se revezavam, por forma que nunca se interrompessem a salmodia e o canto. As escolas dos presbíteros também se não afastavam deste objetivo, pois deviam instruir no sentido dos alunos poderem rezar as horas canónicas de terça, de sexta, de noa e de véspera, no impedimento do respetivo sacerdote. A escola catedral de Metz tornou-se famosa pelo ensino do canto eclesiástico, atraindo alunos de todo o império.

Depreendem-se do conjunto das determinações docentes de Carlos Magno o propósito de elevar a ilustração do clero, regular e secular, a partir dos conhecimentos que mais diretamente importassem ao ofício divino, e a intenção de se estabelecer uma organização hierárquica do ensino, que começaria nas escolas paroquiais e se continuaria e desenvolveria nas escolas catedrais e monásticas.

É de crer que a maioria dos bispos e dos abades dos mosteiros tivesse secundado os votos do monarca; a documentação conhecida, porém, regista um número relativamente pequeno de fundações escolares monásticas e catedrais, omitindo as escolas rurais, ou paroquiais, que, a haverem existido, teriam tido por sede o presbitério. Das escolas catedrais, ou episcopais, ficaram famosas as de Orleans, Lyon, Metz, Reims, Colónia e Aix-la-Chapelle; e das monásticas, instituídas em maior número, as dos mosteiros de São Martinho de Tours, de Corbie, Fontenelle e Aniane, em França; de Saint-Amand, Utrecht e Liège, nos Países Baixos; de Saint Gall, na Suíça; e de Fulda e Reichenau, na Alemanha.

Foi e é corrente dizer-se que Carlos Magno iniciou a reorganização do ensino com a fundação da Escola Palatina, na qual teriam ensinado alguns mestres por ele chamados à corte. Como a designação indica, tratar-se-ia de uma escola que funcionaria na corte e cujas deslocações ela acompanhava. A crítica mais recente mostrou o desacerto desta afirmação, que, fundamentalmente, procede da interpretação incorreta da expressão Schola palatii, que Alcuíno emprega, e do passo da Vida de Carlos Magno, acima citado, em que Eginardo refere o interesse do monarca pela cultura intelectual. A expressão Schola palatii não tinha então somente o atual significado docente, pois designava também o séquito de homens de armas, de funcionários e de servidores que acompanhavam o monarca e formavam a casa real. Domus regia schola dicitur é o sinónimo coevo de Schola palatii, sendo este ainda o sentido da palavra schola entre nós, nos primórdios da nossa autonomia política, no século XII.

A não existência de uma Escola Palatina, no sentido institucional e docente, não quer, porém, dizer que o palácio de Carlos Magno não tivesse exercido ação educativa nos indivíduos, adolescentes e homens de idade, leigos e clérigos, que constituíam a casa e o séquito real, e nele se não houvesse ministrado o ensino, realizado reuniões docentes e conversações eruditas e produzido uma variada literatura cortesã.

Pela extensão e alcance, a obra cultural de Carlos Magno adquiriu, um significado que ultrapassa a esfera pessoal.

As condições institucionais da cultura, que promoveu e fomentou, suscitaram um movimento de atividade intelectual, que, sem chegar a ser uma antecipação da Renascença dos séculos XV e XVI, atingiu em todo o caso notas próprias, designadamente, a difusão do ensino, o cultivo da exegese bíblica, o reconto histórico (de Eginardo, em especial), a reforma unificadora da escrita (designada de minúscula carolina), e a ação de mestres e de eruditos.

Dentre estes, destaca-se o monge irlandês Alcuíno (735-804?), atraído por Carlos Magno a França (781) a fim de formar discípulos e de promover os estudos teológicos. Iniciou a sua atividade ensinando no palácio real, tendo como ouvinte e interlocutor o próprio monarca, além de outros, prosseguiu-a como auxiliar e conselheiro da política escolar de Carlos Magno, pelo que é por vezes designado de «preceptor das Gálias», e terminou-a no mosteiro de São Martinho de Tours, para onde se retirou em 796, lá organizando uma escola monástica, que exerceu poderosa influência, e um scriptorium, que se tornou famoso como escola de caligrafia.

Os seus poemas, as suas epístolas, designadamente a Carlos Magno, os seus manuais didáticos e os seus tratados, em especial de exegese bíblica, acreditam-no como a personalidade de mais relevo intelectual e docente do seu tempo. O passo de uma sua epístola a Carlos Magno como que descobre o teor e o sentido do seu ensino. Nele diz que na escola do mosteiro de São Martinho de Tours, a uns alunos excita com o mel das Sagradas Escrituras, e a outros inebria com as disciplinas antigas, nutre com os frutos da subtileza gramatical e alegra com o conhecimento da ordenação dos corpos celestes.

Significam estes dizeres que Alcuíno ensinava, além da exegese da Sacra página, que constitui, aliás, um dos aspetos mais salientes da sua obra literária, as disciplinas das sete artes liberais. Este ensino pode reconstituir-se, principalmente no que respeita às matérias do trívio, pelos seguintes escritos, desprovidos de originalidade científica, mas significativos do saber e da didática coetâneas; De Grammatica, sob a forma de diálogo, baseado nos livros de Prisciano e de Donato; De Rethorica et Virtutibus, também sob a forma de diálogo entre Alcuíno e Carlos Magno, com base em escritos de Cícero e de Cassiodoro e em exemplos da Sagrada Escritura; e o De Dialética, baseado principalmente em Boécio e em Santo Isidoro de Sevilha. A estes escritos estão ligados o De Orthographia, a Disputatio Pipini cum Albino scholastico, e as duvidosas Propositiones Alcuini ad acuendos juvenes. Dos escritos relativos a matérias do quadrívio, referidos pelos mais antigos biógrafos, chegou até nós somente o De cursu et saltu Lunae ac bissexto, de escasso valor. No seu dizer, as sete artes liberais eram as «colunas» que sustentavam o edifício do ensino sagrado; no entanto, não reconheceu fim próprio ao respetivo estudo, porque, na linha da tradição agostiniana, somente lhes atribuiu a função subsidiária do saber que importava, que era o saber subordinante e normativo da Sacra página, no sentido lato do termo.

Nenhum escrito didático de Alcuíno vale pela originalidade ou pela criação científica, mas todos são altamente representativos da ideia docente que procurou objetivar e que consiste em considerar os saberes como património do género humano, destinado a concorrer para a salvação da alma, e em relação ao qual o espírito aplica uma atividade somente de assimilação, de organização e de transmissão, sem ter em vista a invenção de novos conhecimentos. A impessoalidade deste ensino, assim no teor como na atitude, e a carência de originalidade, respondiam às exigências espirituais da época.


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