IV. Desenvolvimento do ensino eclesiástico secular

O impulso cultural de Carlos Magno não teve continuidade nos seus sucessores imediatos, seguindo-se-lhe um período-de perturbações e de torpor intelectual, manifesto este, a juízo de alguns historiadores, na suspeição lançada sobre os conhecimentos herdados dos antigos, no cultivo das paráfrases verbais e na tendência para a explicação dos acontecimentos sociais e naturais mediante o miraculoso.

A subordinação do saber profano ao saber sagrado não empeceu a atividade docente, mas as instituições escolares não adquiriram igual progressão, pois o ensino eclesiástico secular alcançou maior desenvolvimento do que o monástico. Concorreram para isso motivações de ordem espiritual e circunstâncias de ordem social, resultantes do facto das escolas eclesiásticas seculares exercerem o ensino em aglomerados urbanos e se abrirem a novas correntes do pensamento, ao contrário das escolas monásticas, situadas normalmente em sítios ermos e que perseveraram no cultivo de um saber, que se tornou «erudição conservadora e, em suma, inimigo das 'novidades' perigosas» (Paré, Brunet, Tremblay, La renaissance du Xlle siécle).

Pouco depois da morte de Carlos Magno (814), os abades reunidos em sínodo, em Aix-la-Chapelle, em 817, decidiram que as escolas dos mosteiros recebessem somente oblatos, em ordem à formação de futuros monges, em virtude da escolaridade dos leigos, nas escolas externas, afetar a disciplina monástica. Individualmente, não faltaram monges que ministrassem por contrato o ensino, designadamente a filhos de grandes senhores, e mosteiros houve que mantiveram ou criaram escolas externas, designadamente o de S. Gall, que, a par da escola interna, criou a externa, destinada a clérigos seculares, designados de canonici. De modo geral, porém, durante os séculos X-XII, o ensino foi principalmente ministrado por sacerdotes seculares, tanto mais que as reformas monásticas do século X tiveram quase exclusivamente em vista a disciplina monacal e a sobrevivência da vita apostolica. A palavra «clérigo» tornou-se sinónima de «letrado» e Anselmo de Laon (t 1117), mestre famoso da escola catedral de Laon, escreveu numa epístola ao abade de um mosteiro que os clérigos haviam sido instituídos para pregar e ensinar, e os monges, para rezar, e se ensinam, é por força de necessidade.

Estes factos indicam o desinteresse do clero regular pela atividade docente, por menos conciliável, senão incompatível, com a perfeição monástica. Assim, os cluniacenses não admitiram o ensino de estranhos à comunidade, e os cistercienses, cuja reforma se iniciou em 1098 e de cujo ideal de austeridade o mosteiro de Alcobaça (1148) é acabada expressão arquitetónica, suprimiram as escolas externas, consignaram à leitura a finalidade espiritual e limitaram o estudo aos conhecimentos indispensáveis ao ministério sacerdotal, proibindo expressamente o ensino de disciplinas jurídicas e de teor estético.

Grandes personalidades promoveram e justificaram estas atitudes, de raiz puritana e espiritual. São Pedro Damião (1007-1072), por exemplo, felicitou o abade do mosteiro do Monte Cassino por não ter visto neste mosteiro uma escola de crianças, «que muitas vezes debilitam o rigor da santidade», e escreveu um requisitório contra os monges que se propõem estudar a Gramática (De monachis qui grammaticam discere gestiunt); e São Bernardo  (1091-1153), o Doctor mellifluus, intransigente na oposição à atitude conceptual que submete a autoridade dos dogmas à dedução dialética e reflexiva, insistiu na noção de que ao monge não cumpre ensinar, mas compadecer-se (Monachi non est docere sed lugere).

Nesta exaltação da penitência e da espiritualidade mística vibra a hostilidade contra algumas manifestações coetâneas do espírito dialético, designadamente o racionalismo de Berenger de Tours (t 1008), o nominalismo de Roscelino († 1120) e o conceptualismo de Abelardo (†1142).

A controvérsia suscitada por estas conceções deu impulso ao fervor das meditações e ao ensino teológico das escolas monásticas internas, mas a expansão da atividade docente temporal e o desenvolvimento da cultura secular tiveram por locais principais as escolas das catedrais, dos cabidos e das congregações de cónegos regrantes. Mais flexíveis e abertas do que as escolas monásticas, estas escolas adquiriram significação própria, assim na atividade docente como nas atitudes doutrinais, por vezes opostas às das escolas monásticas, dando ensejo às circunstâncias culturais em que nasceram algumas Universidades no século XIII. O desenvolvimento que atingiram está em correlação com a intensificação da vida urbana e com o espírito que animou a construção das grandes igrejas dos séculos XI e XII, designadamente as de Reims, Chartres, Paris, Canterbury, Toledo, Santiago de Compostela, Braga, Coimbra, etc., nas quais se exprimiram, a um tempo, o condicionalismo social, as conceções artísticas e as atividades culturais.

De modo geral, durante a Idade Média, o clero esteve mais ligado à igreja onde exercia o ministério do que è respetiva diocese. As ordenações faziam-se, normalmente, para o serviço de uma igreja, não faltando regras e determinações que estatuíam a vida em comunidade dos clérigos ligados à mesma igreja, de cujos proventos viviam e que se designavam de canonici, por obedecerem à mesma regra (canon) reguladora do ofício quotidiano e da disciplina da vida em comum. Pela influência que exerceu, é de notar a Regula canonico rum de São Crodegango, bispo de Metz (c. 750), na qual se estatuíram as condições da vida em comum do clero da catedral desta cidade, se estabelecera a organização da respetiva escola, se lhe prescrevera a função de formar sacerdotes, mas sem excluir os estudos seculares, e preceituara a disciplina. A partir desta Regula, que serviu como que de norma às determinações de Carlos Magno no respeitante a estas instituições, as escolas das catedrais e dos cabidos apresentam análoga estrutura, mas o desenvolvimento e a significação histórico-pedagógica que algumas adquiriram, dependeu, fundamentalmente, da ação e do renome dos mestres que nelas ensinaram, da maneira como corresponderam às exigências culturais e da especialização que cultivaram; por isso, antes da instituição das Universidades, no século XIII, que representam, dentre outras coisas, a estabilização do ensino num local, há exemplos significativos de escolares acompanharem o mestre, quando este trocava por outra a escola em que ensinava.

O concílio de Roma, de 1079, recomendou a instituição de escolas nas catedrais e o terceiro concílio de Latrão, de 1179, determinou que se estabelecesse em cada catedral um benefício destinado ao mestre que ensinaria gratuitamente. A despeito destas resoluções, e de outras análogas, nem todas as catedrais instituíram escolas, e nas que as instituíram o respetivo ensino dependeu mais do mestre do que da organização. Prelados houve que assumiram pessoalmente o magistério, mas foi mais frequente, senão normal, delegarem a direção imediata e a própria regência num sacerdote que tinha a designação de magister scholae, ou somente de magister, cujo termo adquiriu significado honorífico, ou ainda a de scholasticus, palavra, aliás, de sentido ambíguo, como a palavra scholaris, pois uma e outra aparecem por vezes, aquela, com o significado de escolar, ou aluno, e esta, com o do mestre.

Para o desempenho do cargo, o magister scholae recorria frequentemente a auxiliares, pois, além da regência das lições da manhã e da tarde, cumpria-lhe fiscalizar os exercícios e o comportamento dos alunos e acompanhá-los nos ofícios litúrgicos.


?>
Vamos corrigir esse problema