V. O ensino no século XII. Disciplinas de estudo e método docente

O desenvolvimento escolar depois do século IX, dentre outras consequências, radicou a conceção, que veio a ser característica da pedagogia escolástica, de que o ensino tem essencialmente sentido espiritual e que a temática teológica e antropológica tem mais valor do que a naturalista. Este primado separa, desde logo, o ensino da alta Idade Média do ensino greco-latino, acentuando-se ainda a diferença com o facto dos mestres gregos e latinos terem sido, em geral, remunerados pela família do aluno e ensinarem o que esta indicava. Nas escolas eclesiásticas, o mestre é designado pela autoridade eclesiástica competente, não sendo livre de ensinar o que entender e quiser. A noção de programa, basilar na pedagogia ulterior, tem neste facto a sua origem mais remota.

Com ser diversificado, o ensino do século XII pode dividir-se, esquematicamente, como que em dois graus: elementar e complementar.

O ensino elementar consistia, fundamentalmente, na leitura, no canto e na escrita. Era ministrado nos presbitérios, nas casas de grandes senhores e, principalmente, nas escolas monásticas e catedrais, em regra, pelo mesmo mestre que ensinava as «artes», pois é no decurso no século XII que aparecem com mais frequência os mestres que ensinavam somente as disciplinas do trívio e do quadrívio a alunos relativamente adiantados.

A instrução dos filhos dos grandes senhores, que não aspiram à vida clerical e quase sempre se formavam na disciplina física e moral que condicionava a investidura na cavalaria, raramente ia além da leitura, do canto e da escrita, mas os oblatos e demais candidatos ao ministério sacerdotal aprendiam algo mais, mas sem perder a feição rudimentar ou elementar.

O currículo estabelecido pelo sínodo de Aix-la-Chapelle, de 789, em correlação, aliás, com determinações de Carlos Magno, compreendia os salmos, a leitura, a escrita, o canto litúrgico, o cálculo e a Gramática.

A aprendizagem começava pelos salmos, aprendidos mnemonicamente, para que os meninos pudessem participar na reza coral. A leitura, que se não aprendia simultaneamente com a escrita, tinha por base a cartula, isto é, um pergaminho com letras, sílabas e palavras.

Para o exercício da leitura tornou-se clássico o Disticha Catonis, seleta organizada por um mestre de Retórica do Baixo-império Romano e constituída por dísticos com máximas morais. A adoção deste livro foi geral, acusando-se ainda entre nós no século XV; além do seu texto, alguns mestres do século XII e seguintes desenvolveram os exercícios de leitura com outros textos, designadamente as églogas de Teódulo, as fábulas de Aviano, as elegias de Maximiano e o «Homero latino», resumo da Odisseia e da Ilíada.

A escrita iniciava-se, normalmente, aprendendo a gravar letras em tabuinhas de cera, passando-se depois à caligrafia no pergaminho, com a pena e tinta. O canto, próprio dos ofícios litúrgicos, tinha, em regra, mestre privativo, que era um sacerdote designado de magister cantorum ou cantor; e o cálculo consistia na aprendizagem dos números e das operações, fazendo-se as contas com os dedos e com o ábaco. Anteriormente ao século XI empregava-se somente a numeração romana, o que tornava o cálculo difícil; com a introdução da numeração árabe diminuíram consideravelmente as dificuldades.

O latim era a língua em uso, consistindo o seu estudo na fixação do vocabulário e no conhecimento elementar das declinações, das conjugações e das partes da oração.

O ensino complementar tinha por objetivo as «artes liberais», repartidas em dois grupos: o trívio, constituído, como dissemos, pela Gramática, Retórica e Dialética, e o quadrívio, pela Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Estas disciplinas eram «vias» introdutórias ao estudo da Sacra página, pelo que se não ensinavam com fim autónomo. Na estimativa coetânea, as disciplinas liberais como que se opunham aos ofícios mecânicos, e o saber profano era propedêutico ao saber escriturário e teológico; não obstante, os conhecimentos positivos que transmitiam e a atitude mental que despertavam, concorreram para a sobrevivência da herança clássica e para que se não secassem de todo as raízes do que se chama o Humanismo.

O plano do ensino elementar não sofreu alterações notáveis; não assim o do complementar, pois não só as disciplinas do trívio, especialmente, adquiriram maior desenvolvimento, senão que se introduziu o ensino independente de novas matérias, que vieram a constituir no quadro de estudos das Universidades as facultates, notadamente a Teologia, regida por mestres teólogos, a Phisica, ou Medicina, e o Direito civil e canónico.

O regime dominante foi o do mestre único, o qual ensinava sucessiva ou simultaneamente algumas disciplinas, principalmente do trívio, pois até ao século XII foram raras as escolas onde se ensinou o ciclo completo das sete artes.

No decurso do século XI, e já acentuadamente no XII, o aumento da frequência escolar e o progresso dos conhecimentos determinaram o alargamento do número de mestres e o desenvolvimento dos estudos complementares, os quais surgiram espontaneamente nalgumas escolas, isto é, sem determinação superior e prévia, por obra dos próprios mestres e por influência do ambiente e das exigências culturais, designadamente em Orleans, Chartres, Paris, Liège, Colónia, etc.

As disciplinas do trívio eram frequentemente designadas de artes sermocinales, pelo contributo que prestavam à expressão do pensamento, e as do quadrívio, de artes reales, em virtude de fornecerem os materiais ou factos que informam o espírito e o habilitam a discorrer com consistência objetiva.

Até ao século XII, os compêndios em voga para o estudo das sete «artes» foram o De nuptiis Philologiae et Mercurii et de septem artibus liberalibus, de Marciano Capela, e o De artibus ac disciplinis liberalium litterarum, de Cassiodoro, aos quais se juntavam frequentemente os três primeiros livros das Etimologias, de Santo Isidoro de Sevilha.

A Gramática servia como que de fundamento ao estudo das demais disciplinas. Era considerada a arte de bem falar e de bem escrever, mostrando a abundância de escritos gramaticais o apreço em que foi tida. A aprendizagem fazia-se pelos compêndios de Donato e de Prisciano.

Pelos séculos XI e XII o estudo da Gramática começou a dar acesso ao conhecimento dos textos literários, o qual, aliás, foi prejudicado pela Ars dictaminis (ou Liber dictaminum), cujos preceitos, destinados à aprendizagem da composição, substituíram no comum das escolas os authores, contribuindo, consequentemente, para retardar o contato direto com as obras literárias da Antiguidade clássica.

A Retórica, cujo ensino se associava ao da Gramática, visava à formação do estilo mediante a leitura e o comentário de textos.

Estudava-se pelo De rethorica, de Marciano Capela, e pelos escritos de Cícero, designadamente o De inventione rhetorica, De partitione oratoria e a Retórica a Herénio. O ensino desta disciplina não recuperou o alcance que tivera no mundo greco-latino, perdendo na aplicação à oratória o que ganhou no exercício de redação, a cuja prática se deu o nome de dictamen prosai-cum, o qual se não deve confundir com a Ars dictaminis.

A Dialética, que Rabão Mauro considerava «a disciplina das disciplinas», tinha por objeto a Lógica. Até ao século XII, esta disciplina foi estudada com base na Isagoge de Porfírio e no Das categorias e Da interpretação, de Aristóteles, mediante as traduções latinas de Boécio. O De arte dialética, de Abelardo, redigido por volta de 1121, não vai além destas fontes, cuja matéria constituiu a chamada Logica vetus, para a distinguir da Logica nova, ou seja o estudo da Lógica com base no texto completo do Organon, de Aristóteles, o qual só se generalizou a partir dos meados do século XII, designadamente na escola de Chartres. O ensino da Logica nova trouxe, dentre outras consequências, o debate entre a formação tradicional, essencialmente gramatical e literária, e a nova formação, fundamentalmente dialética. João de Salisbury (t 1180, bispo de Chartres), expôs no Metalogicus (1159), os fundamentos do debate, combatendo os nugiloquos ventilatores e simbolizando em Cornificius, personagem referido na Ars de Donato como detrator de Virgílio, a conceção que opõe a Natureza à Arte, considera a eloquentia inútil e vinculada, acima de tudo, à disciplina lógica, para a qual não admite limitações, designadamente na interpretação da Sacra página.


?>
Vamos corrigir esse problema