VII. A educação do cavaleiro

O regime feudal, estabelecido no império carolíngio no decurso do século XI, tem no castelo dos grandes proprietários do solo a expressão simbólica da sua organização político-social e da desagregação e fraqueza do poder central do Estado, sem recursos para assegurar a paz e a segurança das populações. A fórmula «nenhuma terra sem senhor» como que atomizou a sociedade nos agregados familiares dos grandes proprietários e senhores, que viviam isolados uns dos outros e, frequentemente rivais, asseguravam por si mesmos a própria defesa e estabeleciam com os indivíduos adstritos à vida e aos bens da família vínculos de dependência, em virtude dos quais o senhor protegia e beneficiava e o vassalo servia e produzia. Os laços de vassalagem, que ligavam todos os indivíduos, corrigiam, em parte, a dispersão da soberania, pois o suserano de um feudo era frequentemente vassalo de um outro e, teoricamente, todos o eram do rei.

As exigências da defesa pessoal e dos vassalos, as competições e lutas frequentes entre os senhores de feudos, a prática dos torneios violentos e a rudeza das caçadas, designadamente ao urso e ao porco montês, por um lado, e por outro o respeito à palavra jurada e os sentimentos de dedicação pessoal e ideal motivaram, naturalmente, uma formação física e uma educação moral condizentes com os valores religiosos vigentes e com a função social e militar das grandes famílias, sob cujos chefes se exercia a vida coletiva dos agregados. Dentre as consequências que este regime desentranhou importa ao nosso objeto atentar na cavalaria, enquanto complexo de valores e de práticas formadoras da educação senhorial.

A atividade educativa das escolas eclesiásticas foi essencialmente intelectual e erudita; baseada em livros, assentava na memória e desenvolvia a capacidade dialética, aplicada principalmente à exegese de textos sagrados, à fundamentação, à crítica ou à defesa de crenças e de conceções ético-religiosas. O seu objetivo visava, fundamentalmente, a formação sacerdotal, passando à margem da formação física e dos anelos da sensibilidade estética. A educação do cavaleiro teve outra base e outro sentido, coerentes, aliás, com a estrutura social que lhe deu azo e com as exigências físicas e morais que a conformavam.

Numa sociedade em que dominavam o arbítrio e as paixões, a cavalaria tendeu a converter o homem de armas em soldado de um ideal, capaz de pôr a sua espada ao serviço da fé religiosa, da proteção do fraco e do respeito pela mulher. Por isso, o cavaleiro recebia uma educação da sensibilidade, religiosa, moral e estética, e não uma educação do intelecto, científica ou profissional; fortalecia o ânimo e desenvolvia a imaginação, e não a memória e a capacidade dialética e de abstração. Os escritos que o formavam e instruíam não eram os compêndios e manuais das disciplinas do trívio e quadrívio mas as canções de gesta e as poesias trovadorescas, e Artur, Tristão, Parsifal e Galaaz foram os heróis que se tornaram modelos da personalidade. Devoção religiosa, fidelidade à palavra jurada, defesa do fraco constituíam o nervo dos dez preceitos do código da cavalaria.

Os ensinamentos que formavam o cavaleiro aprendiam-se imitando e atuando; procediam da ação e do espírito, que não do discurso da razão e do cultivo da mente. O gosto do risco, a paixão da luta, o sentimento da honra, o culto da lealdade foram os principais elementos constitutivos da formação pessoal do cavaleiro, que a um tempo devia ser homem livre e disciplinado.

A cavalaria constituía uma dignidade moral, que a estimativa coetânea aproximava, pelos votos e pelo teor de vida, da «clerezia», a ponto de se ter pretendido impor ao cavaleiro a obrigação do celibato. Daí, o ser tida como sacerdócio de carácter militar, o qual se exercia depois da investidura, isto é, do reconhecimento solene de que o candidato estava apto e era digno de fazer parte da sociedade militante constituída pelos cavaleiros.

Ninguém nascia cavaleiro, porque pertencer à cavalaria era uma honra que se adquiria e não o dom gratuito do berço. Os próprios membros da família real careciam da investidura. Inicialmente, somente os filhos de nobres e de senhores podiam aspirar à investidura, honra máxima na sociedade feudal, mas no decurso do tempo o privilégio quebrantou-se, carecendo, não obstante, o candidato da suficiência de uma situação económica que lhe permitisse sustentar o estado de cavaleiro.

Esquematicamente a educação do cavaleiro desenvolvia-se, em regra, nas seguintes fases:

Pelos cinco-sete anos, o menino que os pais destinavam à cavalaria aprendia na própria casa paterna a montar a cavalo e a jogar o xadrez, distração muito apreciada.

Com o capelão da casa, aprendia, às vezes, os rudimentos da leitura, do canto e da escrita, pois cavaleiros houve que não sabiam ler nem escrever ou sabiam somente ler.

A leitura era, de algum modo, suprida pelos conhecimentos que adquiriam de ouvido acerca da história da família e do país, e das ideias vigentes acerca da conceção do mundo e da vida social.

Pelos doze anos, o adolescente passava a viver num solar mais nobre ou de senhor mais poderoso que o do seu berço, salvo se este era de estirpe muito alta. Na moradia em que vivesse, a educação era doméstica e preparatória dos requisitos da investidura e das exigências da civilidade senhorial. Consistia na aprendizagem da equitação, do manejo da espada e da lança, no treino da caça, em especial da montaria e da falcoaria, e no cultivo do xadrez e, às vezes, da execução de um instrumento musical.

Normalmente, entrava ao serviço de uma dama do solar, da qual ficava «pajem», a fim de adquirir polidez e boas-maneiras e de se cultivar na disciplina ena sociabilidade cortesãs.

Ao período de formação de «pajem» seguia-se o de «escudeiro» em geral pelos catorze anos. O adolescente, que já podia cingir a espada, acompanhava o cavaleiro seu amo e mestre nas bafordas, justas e torneios, nas surtidas, recontros e combates, e nas caçadas, cujo grau de conhecimentos, no que toca à montaria e à falcoaria, se podem ajuizar, respetivamente, pele) Livro da Montaria, de D. João I, e pelo Livro da Falcoaria, de Pero Menino, falcoeiro do rei D. Fernando; na copa, aprendia a trinchar, e na cavalariça, o tratamento dos cavalos.

A expansão da cavalaria coincidiu com o florescimento da poesia trovadoresca e da conceção do amor cortês, pela qual, dentre outras implicações, a mulher foi alvo de deferências até então desatendidas. Daí, tornar-se de boa educação a «arte de donear» e a «gaia ciência», ou sejam a delicadeza no trato das damas e a arte de lhes exaltar o «prez» e a «bondade».

Por isso, a par do exercício das armas e do que importava à atividade física do cavaleiro, o escudeiro aprendia a poetar, entendendo por tal a técnica do verso e o conhecimento dos valores estéticos e morais mais prezados.

Se é legítimo o paralelo com a educação das escolas monásticas e catedrais, pode dizer-se que, em correspondência das sete artes liberais, o candidato a cavalaria aprendia estas sete artes: equitação, esgrima, tiro ao arco, luta, caça (montaria e falcoaria), xadrez e versificação («gaia ciência»).

Pelos vinte e um anos, o escudeiro, assim instruído física e moralmente, formado religiosamente, polido de maneiras e conhecedor das generalidades da «gaia ciência», depois de haver dado provas de que era, ou viria a ser, forte de ânimo no infortúnio, rico de virtudes e dotado de espírito varonil, estava apto a ser investido na cavalaria.


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