V. Literatura pedagógica medieval

A reflexão pedagógica foi como que acidental e esporádica no decurso da Idade Média; a organização escolar, essencialmente conservadora, apresenta-se geralmente hostil a mudanças e inovações de estrutura, as instituições docentes mais características constituíram-se por processo evolutivo, em virtude do desenvolvimento e transformação de instituições anteriores, e às ideias faltou o estímulo vital da problematicidade, dado o mundo de certezas em que o espírito viveu. Não obstante, cumpre atentar nalguns escritos, por significativos da situação cultural e do teor da problemática.

O primeiro, cronologicamente, é o De clericorum institutione, que Rabão Mauro (c. 780-856) redigiu em Fulda, por volta de 819, para os sacerdotes desejosos de adquirir os conhecimentos que mais importassem ao seu estado. A matéria dos estudos ocupa o Livro III (e último). Baseado, como aliás declara, no De doctrina christiana, de Santo Agostinho, considera os diversos saberes como preparatórios do conhecimento da Sacra Página, cujo estudo exige primeiramente a compreensão do texto. Daqui, a conceção da Gramática como fundamento das artes liberais e, portanto, como propedêutica da compreensão dos textos e da atitude comentadora e alegórica na interpretação da Sagrada Escritura, objetivo supremo da atividade intelectual do sacerdote.

Foi esta diretriz, mas com mais extenso e profundo sentido pedagógico, que orientou o Didascalion ou Eruditionis Didascalicae libri septem de Hugo de São Vítor (t 1141), mestre da escola dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, na abadia de São Vítor, de Paris, cuja posição teológica e mística caracteriza, em boa parte, a corrente chamada dos «vitorinos», e cujas conceções pedagógicas são altamente representativas do surto cultural do século XII.

O Didascalion é, propriamente, uma introdução ao estudo da Sagrada Escritura, a qual começa com as artes liberais e se remata com a Teologia, no que toca às matérias de ensino e ao método. Pelo assunto, continua a atitude enciclopédica do Livro das etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, mas infundiu-lhe novo espírito e sentido, porquanto procurou coordenar os diversos saberes num saber total das razões humanas e divinas de todas as coisas, ao qual chama Filosofia, e que divide em Teorética, Prática, Mecânica e Lógica, cada uma das quais, por seu turno, se subdivide em secções próprias.

Em relação ao nosso objeto importa notar a ideia de que todos os saberes têm entre si mútua dependência, de sorte que o quadro das disciplinas das artes liberais devia ser estudada de modo orgânico, pois a falta de uma determinaria a deficiência da formação do filósofo. Consequentemente, todos os saberes são subsidiários e solidários em relação à adquisição do conhecimento cabal, o que equivale a dizer que, em face do primado do saber teológico, Hugo de São Vítor subordinou a cultura estética ao conhecimento intelectual e este, ao conhecimento profundo da Sacra Página. No processo adquisitivo deste último conhecimento distinguiu a lectio da meditatio, ou sejam, respetivamente, a assimilação pela leitura e a reflexão pessoal. A discriminação diz respeito, propriamente, ao estudo da Sagrada Escritura, mas vai além dele, por significar a necessidade da reflexão e da interiorização na formação do conhecimento.

O exame a que submeteu as condições e dificuldades da explicação histórica, alegórica e moral da Sagrada Escritura, concorreu, a par do método do sic et non de Abelardo, para a constituição da metodologia do ensino teológico da Universidade de Paris.

Pelo título, o Didascalion ecoa no Dialogus super auctores sive Didascalion que Conrado Hirschau compôs no meado do século XII e no qual versou, principalmente, o ensino da Gramática; e pelas ideias, sofreram-lhe a influência alguns escritos, designadamente o capítulo «De pueri instructione» do Speculum doctrinale, de Vicente de Beauvais (†1264).

Sob o título geral do Espelho (Speculum) planeou este erudito dominicano uma enciclopédia de harmonia com a história sagrada, da qual expôs no Speculum naturale a doutrina acerca de Deus, dos anjos, dos seres e coisas segundo a ordem dos dias da Criação; no Speculum doctrinale, o conjunto das diversas disciplinas, e no Speculum historiale, a sucessão histórica, em trinta e dois livros, desde a Criação até ao imperador Frederico II.

Nesta última parte, a índole da obra levou-o a tocar em temas pedagógicos, os quais têm sido como que destacados sob dois títulos: De pueri instructione e De institutione puerorum regalium. No De pueri instructione, a educação é considerada acessoriamente, como parte da matéria relativa aos bons costumes, procedendo fundamentalmente de Santo Agostinho as ideias que expõe. No De institutione puerorum regalium, que é o título dado à edição separada de capítulos do Livro VI do Speculum doctrinale, o Belovacense, que parece ter sido mestre dos filhos de Luís XI, rei de França, ocupou-se com mais autonomia de temas em relação com a educação dos príncipes. No juízo comum, este tratado, dedicado à rainha Margarida de França, também é obra de escassa originalidade, acusando a influência de Hugo de São Vítor, apesar de conter algumas observações que parecem fruto da própria experiência e de haver tido em consideração a educação feminina.

Pelo objetivo, o Da educação dos príncipes, de Vicente de Beauvais, como que anuncia a literatura renascentista relativa à formação moral e intelectual dos reis e relaciona-se com os escritos e teorização política, de que são expressão capital os tratados Do governo dos príncipes (De regimine principum), de São Tomás de Aquino e de Egídio Colona, também designado de Egídio Romano (t 1316). Estes dois livros, que fizeram autoridade em Portugal nos séculos XIV e XV, versam propriamente a teoria do poder político, contendo considerações de carácter pedagógico a propósito da formação intelectual e moral do futuro reinante. Egídio Romano, em especial, dedica no seu Regimento capítulos relativos ao dever de ministrar a educação e ao objeto da educação e do ensino.

Seria exíguo e irrelevante o lugar de São Tomás de Aquino na literatura pedagógica se se tivesse em conta somente o De regimine principum, tanto mais que não é isenta de dúvidas a atribuição da autoria, no todo ou em parte, desta obra. O seu génio multímodo, porém, embora incidentalmente, ocupou-se de alguns temas de filosofia pedagógica em vários dos seus livros, e retomou, no De magistro, o problema da possibilidade e da natureza do ensino, que Santo Agostinho tratara, como vimos, em obra de igual título.

Partindo da noção de que o homem não tem em si próprio o princípio da sua existência e de que a ciência não é um produto da mente mas um pressuposto da própria inteligência e do próprio saber, o De magistro, de Santo Agostinho, expusera a doutrina de que «somente Cristo é Mestre, que fala dentro de nós», isto é, a verdade divina que se dá íntima à mente e a ilumina. O saber não é coisa que se aprenda estritamente mediante estímulos externos, porque somente a sapiência divina ensina verdadeira e plenamente; por isso, a educação consiste, propriamente, em autoeducação, pois o que se aprende resulta de um processo interior de quem aprende, em relação ao qual a ação de quem ensina, isto é, do mestre humano que por palavras comunica o saber, é subsidiária, embora útil pelo estímulo que desperta. No De magistro, São Tomás de Aquino retoma o tema agostiniano, procurando mostrar em que sentido se opera o magistério humano, de mestre para aluno.


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