II. O Humanismo e a conceção formativa das línguas clássicas. O método dos colóquios

O Humanismo foi originariamente um acontecimento italiano, que se manifestou plenamente no século XV e se propagou a toda a Europa ocidental, adquirindo em cada país aspetos mais ou menos peculiares.

Assinala uma das manifestações mais salientes da Renascença, entendendo-se, em sentido estrito, por Humanismo, o movimento de renovação das letras e de formação humana, de honesta disciplina, com base nas litterae humanae ou studia humanitatis, graças ao qual se opuseram os valores estéticos da Antiguidade aos da Idade Média e se reanimou o ideal do homem completo, na plenitude das suas capacidades físicas, intelectuais e artísticas. Repelindo, em regra, a tradição docente medieval, os humanistas procuraram reatar o fio da continuidade histórico-cultural com o mundo antigo, aliás retomado diversamente, pois a par do humanismo paganizante se desenvolveu o humanismo cristão, nutrido da lição dos primeiros Padres da Igreja, e após o humanismo literário se produziu o humanismo de conteúdo doutrinal e espiritual.

Ao contrário da atitude medieval, que afeiçoara o legado dos antigos às exigências ético-religiosas, os humanistas consideraram os monumentos literários greco-latinos como expressão definitiva e modelar de formas e de ideais que deviam ser assimilados e imitados na sua autêntica e irrepetível perfeição, e cujo estudo exerce uma ação maiêutica, despertadora dos dotes e possibilidades humanas. Por isso, a formação humanista se não exprime somente pela atividade literária, visto abranger, intrinsecamente, a posse e o exercício dos dotes do homem plenamente cultivado e de bom--gosto, capaz de gozar todas as produções e todas as manifestações da Vida, a um tempo «mente às Musas dada e braço às armas feito», como expressivamente disse Camões.

Inicialmente, o Humanismo acentuou, principalmente, o sentido histórico-filológico, olhos postos no ideal do conhecimento cabal e da restituição dos textos à prístina forma; domina-o então o regresso à Antiguidade e exprimem-no, acima de tudo, a indagação dos textos originais dos autores gregos e romanos, a admiração da respetiva expressão literária e a transformação do método gramatical em instrumento de depuração crítica e de retificação de acontecimentos históricos.

Este foi o período da procura dos monumentos literários da Antiguidade, característico da primeira metade do século XV, o qual não raro pôs à prova a tenacidade e a coragem de alguns eruditos, e a fase de imitação, por assim dizer formal, dos autores clássicos, principalmente de Cícero. Ao mais extenso, profundo e compreensivo conhecimento dos monumentos literários, científicos e filosóficos, ao culto da letra e à atitude recetiva e, por assim dizer, passiva, sucedeu a apreensão das divergências de sensibilidade e de ideias dos antigos e dos medievais, o sentimento de que a assimilação dos clássicos como que operava a renascença do espírito e lhe ditava novas diretrizes à atividade intelectual. Assim, como exemplos significativos e de largo alcance, podem apontar-se os escritos de Arquimedes, que a Idade Média ignorara, e a lição correta e depurada dos livros de Hipócrates: aqueles, pelo estabelecimento preciso de problemas bem delimitados e pela associação do cálculo à observação, concorreram poderosamente para a constituição da mentalidade estritamente científica, orientada para o como e não para o porquê; estes, pela explicação puramente natural, em correlação com a incipiente conceção mecanicista da Natureza, contribuíram para o desterro das crendices astrológicas tão vulgares na Medicina arábiga.

Integrando-se pelo saber na estrutura e na atividade intelectual dos antigos, a mente formada nos Studia humanitatis como que passa da letra dos livros para o espírito que os ditara, adquirindo a consciência intelectual e estética a sensação de se descobrir a si mesma e de se sentir livre e independente.

Daqui, o Humanismo se constituir e caracterizar como movimento espiritual de descobrimento do homem como valor próprio, graças ao qual a mente sente que «renasce» com novas possibilidades e novo sentido da Vida.

A crítica tem abalado a fórmula de Michelet, de que a Renascença se caracteriza «pela descoberta do homem e da natureza», desenvolvida por Burckhardt no seu notável livro sobre A cultura da Renascença na Itália (1860), mas não padece dúvida que a conceção da individualidade humana adquiriu perspetivas de novo sentido e de maior densidade, como a do uomo di virtú, de significado ativo e político, e o do uomo universale, de significação cultural, do qual Leonardo da Vinci (1452-1519) é o mais alto e genial representante. João Pico della Mirandola (†1494) desenvolveu esta conceção no De dignitate hominis, sustentando que a essência do ser humano consiste na capacidade de se exceder a si mesmo e criar novas realizações num processo que não tem limites.

Na ambição de apreender o que há de belo, de fecundo e de fundamental na existência, este movimento desentranhou a revisão dos valores vigentes, pelo que significa uma autêntica revolução espiritual, em cujos princípios, conceitos e tendências se encontram algumas das raízes do pensamento e das conquistas modernas. O Humanismo e a Renascença podem, por isso, ser considerados sob diversos pontos de vista, embora relacionados mais ou menos intimamente.

Pedagogicamente, e em sentido próprio, o que caracteriza o Humanismo da Renascença é a conexão estreita da formação intelectual com a capacidade de expressão verbal. Sob este aspeto, as suas raízes mais fortes nutriram-se das conceções do De liberorum educatione, de Plutarco, segundo a tradução de Guarino Guarini (1374-1460), da Institutio oratoria, de Quintiliano, cujo texto completo foi descoberto por Poggio em 1418, e do Orator e do De oratore, de Cícero. Ciência e eloquência compenetram-se intimamente; por isso, na esteira dos ideais formativos da época imperial romana, os humanistas rejuvenesceram o ideal do vir bonus, dicendi peritus, e consideraram fundamental o estudo das disciplinas literárias, ao qual atribuíram uma função educativa sem par, assim em ordem à perfeição da expressão do pensamento como à elevação do sentido estético e à preparação para a vida social.

A juízo dos humanistas, o grego e o latim favoreciam, como nenhumas outras línguas, a expressão perfeita e bela do pensamento, objetivo supremo da formação mental. Admitindo, por óbvio, que não pode haver pensamento claro onde não houver expressão clara e precisa e confundindo o objeto da Lógica com o da Retórica, foram levados a estabelecer que o domínio das línguas clássicas, em especial o do latim, era condição necessária para bem pensar, qualquer que fosse o objeto do pensamento, em virtude do valor formal inerente a essas línguas. Além de intrinsecamente formativo, o conhecimento do latim, nos países de fala românica aparecia como condição necessária para o conhecimento cabal e para a aplicação precisa do idioma falado.

O domínio das línguas clássicas não tinha somente o mérito de favorecer a clareza do pensamento e da sua expressão, porque a leitura assídua de escritores, como Cícero, proporcionava a assimilação da elegância do estilo e da dicção. A juízo dos primeiros humanistas, como Lourenço Valla († 1457) e Rodolfo Agrícola (†1485), o estilo e a dicção formalmente perfeitas não são recursos meramente subsidiários, porque significam a afirmação viva do sentido estético e do próprio ideal da dignidade.


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