III. Educadores e tratadistas italianos da formação humanista

Em contraste da uniformidade metodológica e doutrinal da educação medieval, a educação humanista apresenta, sob a conformidade genérica do ideal formativo, dos studia humanitatis, a variedade das práticas docentes e das opiniões pedagógicas. A razão procede do humanismo renascentista, em especial o italiano, se haver compenetrado da tendência individualizante do saber e do valor da individualidade como expressão da autonomia pessoal. Em vez da transmissão dogmática de doutrinas, teve em vista a formação e o desenvolvimento das capacidades individuais, mediante o conhecimento direto e repensado dos clássicos; por isso, ao contrário da escola medieval, que sujeitava a atividade do mestre à uniformidade metodológica e à constância das mesmas matérias, a escola dos humanistas foi em grande parte criação deles próprios, que nela introduziam a inovação de planos de estudo e a aplicação de métodos mais ou menos pessoais.            

Sem embargo da tendência individualizante, o ensino humanista tem de comum, e característico, a finalidade liberal, ou seja a educação própria de homens livres, isto é, não utilitária e fundada na humanitas, entendida como conjunto de valores espirituais que dignificam o Homem; a conceção dos estudos literários como processo formativo da personalidade, e a feição aristocrática, em ordem à capacitação de um escol, recrutado nos que podiam aspirar pelo nascimento ou pelos recursos materiais ao desempenho de altos cargos. Cada uma destas finalidades suscitou teorizações mais ou menos aprofundadas, designadamente o desígnio aristocrático, que se especificou na formação do gentil-homem, a qual teve a sua mais alta expressão literária no Cortegiano de Baldassar Castiglione (1478-1529), dedicado ao cardeal D. Miguel da Silva, e na educação do príncipe, de abundante literatura, assim na Itália como nos países da Europa Ocidental.

Pedagogicamente, importa distinguir no Humanismo italiano, como aliás, de modo dera!, no Humanismo da Renascença, o aspeto institucional e a atividade docente da preceptiva programática e da reflexão teórica. Apesar de conexas, a clareza aconselha a consideração separada.

As primeiras escolas humanistas apareceram na Itália, nos finais do século XIV, em centros de intensa atividade, designadamente Florença, Pádua, Mântua e Verona. Institucionalmente, singularizam-se desde logo pela frequência da proteção ou mecenato de príncipes e magnates, pela autonomia didática sem ingerência eclesiástica, pelo critério pessoal da atividade docente, pelo teor dos estudos, sem discriminação de ensino secundário e superior e sem finalidade profissional, e pela instauração do regime convivial, ou doméstico, de mestres e de alunos (contubernium).

A introdução do estudo das humanidades nas Universidades existentes sofreu as naturais vicissitudes que acompanham as inovações. O carácter acentuadamente profissional do seu ensino explica-as em grande parte; não obstante, apesar de em Bolonha se haver instituído definitivamente a cátedra de humanidades muito tarde, em 1515, pode dizer-se, de modo geral, que o ensino do grego e da retórica se fez, mais ou menos provisoriamente, desde os fins do século XIV. Nas Universidades e escolas de fundação mais recente, dos séculos XIV e XV, como as de Pisa, Pavia, Ferrara, Perúgia e Turim, as letras clássicas tiveram, em geral, mais franco acolhimento. Florença, em particular, ocupa nos finais do século XV o lugar de mais alto-relevo, já pelo ensino de mestres como Argirópolo, bizantino, Calcôndilas, Poliziano, que teve discípulos portugueses, e João Láscaris, amigo de Erasmo, já pela restauração do platonismo, que teve por centro a Academia Platónica, por promotor Marsílio Ficino e por mecenas Lourenço de Médicis, já pelos interesses culturais da sua burguesia esclarecida e poderosa.

A par do ensino ligado a instituições antigas, constituiu-se o ensino de fundação particular, cuja feição dependia fundamentalmente do mestre que o criava ou dirigia. Destacam-se, em Pádua, João Conversino (1343-1404), mestre de Pier Paulo Vergério (1370-1444), tratadista da pedagogia humanista e  da educação do príncipe, e Gasparino Barzizza (1407-1422); em Mântua, onde fora chamado pelo príncipe João Francisco Gonzaga, Vitorino de Feltre, organizador da Casa Giocosa, e em Verona e, mais tarde, em Ferrara, Guarino Guarini (1374-1460), de Verona, pelo que é frequentemente designado de Guarino Veronese.

A atividade destes mestres é inseparável da história institucional e didática do primeiro Humanismo, em especial de Guarino Veronese e de Vitorino de Feltre, pelo veemente sentido educativo que os animou. Institucionalmente, estes dois mestres adotaram o regime convivia! (contubernium), que Gasparino Barzizza inaugurara em Pádua, aplicando-o Guarino de Verona em Florença, Verona e Ferrara, e Vitorino de Feltre, em Mântua, com notável êxito, afirmando a um tempo as suas raras qualidades de educadores e tornando-o característico da pedagogia inicial do Humanismo italiano. Este regime formativo, que Séneca encarecera numa das epístolas (VI), coordenava a instrução com a educação e a atividade do mestre com a do preceptor, mediante a combinação da lição doutrinal com o exemplo da conduta e do ensino público com a privança doméstica, julgando Woodward que os escolares, ou contubernales, como eram designados, «se assemelhavam aos alunos internos de um diretor de escola pública diurna ou de professor de faculdade, mas sem a continuidade e a vigilância que uma organização colegial assegura». O regime dependia essencialmente do mestre, que, em regra, dedicava a manhã ao ensino, que era público, e a tarde e a noite, à convivência e ao estudo com os alunos internos.

Guarino Guarini, em cuja escola de Ferrara aprenderam alguns eruditos famosos, designadamente Ermolau Barbaro, teve uma alta noção do valor da educação, que a seu juízo deveria ser completa, isto é, física, intelectual e moral, assim como do poder formativo das letras antigas. No convencimento de que a latinidade não se compreenderia cabalmente sem o conhecimento do grego, associou o ensino das duas línguas clássicas. Na didática, seguindo Quintiliano, iniciou a repartição do trívio em três cursos: o elementar, destinado ao estudo da pronúncia do latim, das declinações e das conjugações; o gramatical, que, como Quintiliano, subdividia em «metódica» e «história», e a leitura e o comentário de autores, como Cícero, Tito Lívio, Virgílio, Ovídio, etc., em ordem ao bom gosto e à educação moral; o retórico, especialmente consagrado ao estudo de Cícero, de Quintiliano, de Platão e de Aristóteles.

Como cumpria a um inovador, pôs de lado os manuais tradicionais, redigindo em sua substituição as Grammaticales regulae, o Dialogus de arte punctandi et de accentu, os Carmina differentialia e a Summa rhetoricae novae. O método que praticou foi descrito por seu filho Baptista no De modo et ordine docendi et discendi (1459).

Vitorino Rambaldoni, de Feltre (1378-1447), assinalou-se principalmente pelas suas extraordinárias qualidades de educador. Da sua pena não saíram escritos pedagógicos, mas a sua ação docente e organizadora, testemunhada por discípulos (Prendilacqua e Sassuolo de Prato) e por coetâneos (Platina, Vespasiano de Bisticci, etc.) acredita-o como relevantíssima encarnação do ideal prático do Humanismo.

Bom conhecedor das línguas clássicas, que aprendera com Gasparino Barzizza e com Guarino de Verona, instruído nas matérias do quadrívio, especialmente na Aritmética e na Geometria, experiente do magistério, assim na escola que criara em Pádua (c. 1420) e onde ensinara Latim e Matemática, como na cátedra de Retórica na Universidade de Pádua, na qual sucedera (1422) a Barzizza, a fama do seu nome e o conselho de Guarino de Verona levaram o marquês de Mântua, João Francisco Gonzaga, a convidá-lo, em 1423, para preceptor de seus filhos. O príncipe destinou-lhe um palacete, no parque do castelo de Mântua, conhecido por «La Zoiosa» (casa de recreio), cuja designação Vitorino de Feltre mudou para La Casa Giocosa, decorando-a com pinturas a fresco, de crianças brincando, como que para sugerir que o aprender se deve acompanhar de alegria. Inicialmente, teve por discípulos os filhos do marquês de Mântua, mas pouco a pouco foi alargando a frequência da «Casa Giocosa» a filhos de famílias nobres e abastadas e, por fim, a pobres, transformando-a numa casa-colégio (contubernium), que se tornou altamente representativa desta modalidade da organização docente e educativa.


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