IV. Difusão do ensino das humanidades nos países ocidentais

Com ser caracteristicamente latino, e mais propriamente italiano, mormente no que toca ao condicionalismo histórico das origens, o Humanismo irradiou de Itália por toda a Europa, adquirindo na expansão, num ou noutro país, aspetos peculiares, mas raramente ultrapassando o âmbito cultural de grupos mais ou menos extensos de eruditos, de letrados e de artistas. Pedagogicamente, porém, sem embargo das variações e peculiaridades nacionais, tornou-se extensivo ao sistema de ensino da Europa, conservando a característica fundamental do predomínio da formação literária com base nos clássicos e o ideal da Instituição oratória de Quintiliano, ou seja o do vir bonus, dicendi peritus, que a um tempo sabe o que diz e exprime o pensamento com elegância. Os manuais de Donato, de Prisciano, de Alexandre Vila Dei, que durante séculos andaram nas mãos dos escolares, são repelidos das escolas, com o fundamento de que não conduziam ao conhecimento do latim puro e muito menos à perfeita latinidade da expressão verbal. Por isso, ao contrário das «artes» e «doutrinais» do trívio medieval, o ensino propriamente gramatical dos humanistas limitou-se, comummente, às regras, mais importantes, mas em compensação a leitura dos autores tornou-se mais extensa, aprofundada e formativa do bom gosto, ministrando-se a propósito das particularidades as explicações formais, de sintaxe, de fundo ou de matéria que o texto suscitasse.

O latim, muito mais ensinado que o grego, a despeito das teorizações que aconselhavam o estudo simultâneo das duas línguas, como na Roma imperial, era ensinado normalmente como língua viva, pelo método direto, postergando-se o emprego e o estudo da língua materna. Era pelo latim que se iniciava a aprendizagem, de sorte que saber ler como que equivalia a dizer que se sabia latim. O humanista flamengo Nicolau Clenardo deixou numa das suas epístolas a descrição prática do método coloquial no ensino do latim, sendo significativo que João de Barros, no Diálogo em louvor da nossa linguagem (1540), tivesse justificado o estudo prévio da língua portuguesa, já porque a sua expansão contribuiria poderosa e duradoiramente para a unificação dos territórios de soberania nacional, já porque o conhecimento da gramática portuguesa «alumia» o da latina, o que se não dá com quem somente souber esta.

Em regra, os primeiros mestres não empregaram seletas, para cuja utilização, de intuitos normativos quase sempre, muito contribuiu a prática dos colégios da Companhia de Jesus, seguindo como texto a obra de um autor da sua predileção e orientando o ensino em ordem à compreensão cabal da leitura, à redação e à elocução perfeitas. A disciplina tendeu para a suavidade, reduzindo-se bastante a aplicação dos castigos corporais.

Na sua difusão, o que o humanismo italiano ganhou em extensão perdeu-o, de algum modo, no estímulo formativo da personalidade, dado se acentuar frequente e predominantemente, o estudo formal da linguagem, a indagação estilística. Desta última foi expressão característica o ciceroniamismo, isto é, a didática assente na noção de que o único estilo digno de imitação era o de Cícero, especialmente nas orações, pelo que os alunos deviam fixar o léxico, o sentido das palavras e as formas estilísticas próprias do grande orador — formalismos cujos exageros Erasmo satirizou no Ciceronianus, corrigindo-o com a conceção ampla da necessidade do latim para o domínio da cultura e mostrando que somente merece ser tido por ciceroniano quem veste o que pensa com a expressão mais adequada e perfeita.

Pedagogicamente, a expansão do Humanismo caracteriza-se pela reorganização do ensino com base nos studia humanitatis, a qual deu novo teor aos estudos pré-universitários, se não produziu num só tempo e do mesmo modo nos diversos países e se acompanhou, por vezes, da crítica à tradição didática e à situação institucional docente.

As primeiras manifestações escolares do Humanismo no continente europeu, aquém dos Alpes, deram-se na modificação do ensino do latim e na introdução do da língua grega, as quais começaram a verificar-se no decurso da segunda metade do século XV e se radicaram definitivamente durante a primeira metade do de quinhentos. O melhor e mais extenso conhecimento das duas línguas determinou a revisão do plano tradicional das disciplinas das «artes», fundamentou a formação letrada e tornou possível a atividade editorial de algumas imprensas, cujas divulgações de textos clássicos e de escritos acerca da literatura, da história e do saber antigos são inseparáveis do triunfo do novo teor dos interesses intelectuais. Mais ou menos diretamente, as mais famosas tipografias dos finais do século XV e começo do século XVI estão ligadas a centros de estudos de humanidades, designadamente, e como exemplo, as dos doutores teólogos Fichet e Heylin, em Paris, vinculadas à Sorbona (1470), a Imprensa da Universidade de Oxford (1478), a oficina de Thierry Martens, mestre de Artes, em Lovaina (1512) e as de Froben, de Amerbach e de Hebster (Oporinus), em Basileia, de notável nomeada nos primeiros decénios do século XVI.

No centro da Europa, a introdução da pedagogia humanista foi como que facilitada pela congregação dos «Irmãos da Vida em Comum», fundada pelo holandês Geert Groot (Gerhardus Magnus, 1340-1384), cujos membros, sem os votos das ordens monásticas, se devotavam a atividades práticas, educativas e docentes.

Pelas escolas que fundou, designadas por vezes de Scholae Hieronymitanae ou Gregorianae, de ensino gratuito, pelos internatos, cujos educandos frequentavam escolas públicas, pelos mestres que proporcionou às escolas municipais e eclesiásticas — em Paris, a Sorbona confiou-lhe a direção do Colégio de Montaigu, onde estudaram alguns portugueses —, pelos subsídios a estudantes pobres, pela atividade editorial, foi grande a influência desta Congregação, do Escalda ao Vístula, principalmente dos meados do século XV à Reforma luterana.

Os seus mestres não alteraram o plano e o conteúdo tradicionais do ensino das disciplinas do trívio, mas, em geral, não contrariaram o acesso das inovações, designadamente da leitura dos clássicos, concorrendo, assim, para que o triunfo dos studia humanitatis nos países germânicos se não acompanhasse da tendência estetizante e, principalmente, paganizante, que a sensibilidade e o pensamento de alguns italianos lhe conferiram. É significativa, sob este aspeto, a atitude mental dos primeiros humanistas germânicos, como Alexandre Hégio, Wimpheling, Erasmo, Beato Renano, e de tantos outros de menor nomeada, que na juventude foram instruídos por mestres jeronimitas, não o sendo menos a organização didática do latim por classes (de 6 e de 7 ou 8 para os melhores alunos), que João Cele, amigo de Gerardo Groot, instituiu em Zwole, na Holanda, em termos que o acreditam como iniciador dos ginásios, as típicas escolas de humanidades clássicas nos países germânicos.

Nas escolas da Flandres e dos Países Baixos, a introdução do ensino das línguas e das letras antigas operou-se relativamente cedo e desenvolveu-se por forma significativa. Na Holanda, país natal de Rodolfo Agrícola (1443-1485), pioneiro do ensino das humanidades e primeiro orientador do sentido filológico que o humanismo adquiriu nos países germânicos, e de Erasmo, o «príncipe dos humanistas», os studia humanitatis tiveram em Alexandre Hegius (1420-1498), helenista e regente da escola de Deventer, um mestre que no último quartel do século XV instruiu numerosos discípulos, alguns dos quais firmaram o nome na erudição e na filologia clássica. Na Flandres, a Universidade de Lovaina, fundada com larga autonomia em 1425, por solicitação de burgueses da cidade, tornou-se inseparável da história docente das humanidades.


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