V. Conceções pedagógicas de Rodolfo Agrícola Erasmo, Luís Vives, Rabelais e Montaigne

Aterrado com o atraso do filho, após tantos anos de estudo, Grandgousier ouve um amigo, que o aconselha a comparar o estado de Gargantua com Eudemon, um jovem «do tempo de agora», que estudara somente durante dois anos com Ponocrate, mestre moderno. O confronto foi decisivo: Eudemon tinha confiança em si, exprimia-se com propriedade e apresentava-se com correção; Gargantua, pelo contrário, tapando a cara com a carapuça, chorando «como uma vaca», nem sequer abria a boca. Perante isto, o pai resolveu confiar Gargantua a Ponocrate, isto é, a um só mestre e não a uma escola pública, que o conduz a Paris mas não inscreve na universidade nem num colégio, cujos magistérios, métodos e teor de vida Rabelais critica e satiriza em vários passos da sua obra.

Ponocrate, que simboliza a conceção humanista da educação como renascença do espírito e das capacidades humanas adormecidas pela educação tradicional, começou por purgar «canonicamente» o espírito de Gargantua de todo o resíduo da educação escolástica que havia recebido, para em seguida lhe ministrar uma educação harmoniosa, física, intelectual e moral.

Homem feito e já pai, Gargantua mandou educar o filho, Pantagruel, de acordo com os ensinamentos da sua experiência pessoal de estudante, dirigindo-lhe, quando ele frequentava a Universidade de Paris, uma carta, que é a expressão do triunfo da luta contra a educação escolástica, e na qual o exorta «à hien profiter en étude et en vertu» e lhe debuxa o quadro enciclopédico da cultura desejável.

O ideal educativo de Rabelais assenta na conceção otimista da natureza humana e na ação formativa da liberdade. A seu ver, a natureza gera de per si, imanentemente, a beleza e a harmonia, pelo que tudo o que contrarie o desenvolvimento natural conduz ao constrangimento e discórdia.

«Naturam sequere» é a sua máxima fundamental; consequentemente, a sociedade ideal será aquela em que os indivíduos cultivados e esclarecidos se guiem somente pelas razões da razão e pelos ditames do coração. Na abadia de Thélème, edificada para recompensar Frei João des Entommeures por haver combatido valorosamente ao lado de Gargantua contra o rei Picrochole e onde não têm entrada os indivíduos e estados que Rabelais censura ou detesta, vive-se a modo de um convento laico, sem estatutos nem regra, porque os que nele moram, sabedores dos seus deveres e obrigações, se respeitam mutuamente e praticam, sem lesão nem ofensa de outrem, a divisa que os congrega: «Fay ce que vouldras».

Aplicada à educação, esta conceção da vida e da convivência implica o repúdio das regras e constrangimentos contidos na noção vulgar de «disciplina», o desenvolvimento físico do organismo e a cultura integral do espírito, assim no domínio dos conhecimentos desinteressados como das técnicas.

Pelo que respeita ao método, Rabelais propugna que o estudante inicie a aprendizagem como que brincando. O cálculo numérico, por exemplo, pode ser aprendido com cartas de jogar, e as lições, de modo geral, devem partir das coisas para as palavras, cumprindo aproveitar todos os locais e       ensejos para inculcar conhecimentos a partir de dados concretos e de experiências sensoriais.

No seu pensamento, a educação tinha de ser completa e harmoniosa, física, intelectual, moral e religiosamente.

Sob o ponto de vista físico, Rabelais começa por ligar importância à higiene para, em seguida, defender a prática da ginástica, isto é, de exercícios, de passeios e, de modo geral, da vida ativa. Como médico, Rabelais sabia o valor da educação física, mas o seu programa só podia ser cumprido por gigantes, pois exigia a prática diária de três a quatro horas e a aprendizagem de todos os desportos e de todos os jogos complicados e perigosos.

Sob o ponto de vista intelectual, o plano de estudos é enciclopédico, pois Rabelais pretende que o seu estudante ideal seja «um poço de ciência». São de per si expressivos os seguintes passos da carta de Gargantua a Pantagruel, que textualmente traduzimos:

«Entendo e quero que aprendas as línguas perfeitamente. Em primeiro lugar, a grega, como quer Quintiliano; em segundo, a latina; e depois, a hebraica, para as letras sagradas, e a caldaica e arábiga igualmente, e que formes o teu estilo, quanto à grega, à imitação de Platão, e quanto à latina, de Cícero. Que não haja História que não tenhas presente na memória, para o que te ajudará a Cosmografia dos que dela têm escrito. Das artes liberais, Geometria, Aritmética e Música, já te dei algum gosto quando ainda eras pequeno, na idade de cinco ou seis anos; prossegue no resto, e de Astronomia, que saibas todas as regras. Põe de lado a Astronomia divinatória, e a arte de Lulo, como abusos e vacuidades (vanitez). Do Direito civil, quero que saibas de cor os belos textos e que os confiras com Filosofia.

«Quanto ao conhecimento dos factos da natureza, quero que a isso te apliques curiosamente; que não haja mar, ribeiro, nem fonte, de que não conheças os peixes; todas as aves do ar, todas as árvores, arbustos e fronteiras das florestas, todas as ervas da terra, todos os metais ocultos no ventre dos abismos, as pedrarias de todo o Oriente e do Sul, nada te seja desconhecido. Repassa acuradamente os livros de médicos gregos, árabes e latinos, sem desprezar os talmudistas e cabalistas; e com frequente anatomia alcança o conhecimento perfeito do outro mundo (microcosmo), que é o homem. Por algumas horas do dia, começa a familiarizar-te com os textos sagrados: primeiramente, em grego, o Novo Testamento, e as Epístolas dos Apóstolos, e depois, em hebreu, o Antigo Testamento.

«Em suma, que eu veja em ti um poço sem fundo (abysme) de ciência» (Pantagruel, cap. VIII).

Se o plano de exercícios físicos é próprio de gigantes, o da instrução intelectual exige portentos. Coerente com a estimativa dominante, Rabelais propugna o estudo desenvolvido das Letras, mas alguns passos sugerem que a sua preferência ia para o das Ciências. Num e noutro, o método deve ser prático e objetivo, sem verbalismo. Assim, no ensino das Letras, as línguas devem ser estudadas nos textos, exercitando-se o aluno na fala e na redação correta do latim; e no das ciências, as lições de Astronomia devem assentar na observação, as da Botânica, no exame das plantas, e assim sucessivamente, sempre sob a ideia de que a Natureza deve, a um tempo, ser sentida emotivamente e conhecida objetiva e concretamente. No fundo, uma metodologia assente na lição de coisas, e um magistério que aproveita todos os ensejos e põe em uso exercícios atraentes e repetições frequentes.

Sob o ponto de vista moral e religiosos, Rabelais pretende acima de tudo a robustez do carácter e a sinceridade da piedade, que ele não identifica com o mero cumprimento formal de práticas rituais.

Ao contrário de Erasmo e de Luís Vives, Rabelais não atentou na educação feminina, pelo que nada escreveu acerca da maneira mais adequada de proporcionar à mulher a entrada na «oficina de Minerva». É esta uma das deficiências do pensamento educativo do Gargantua e Pantagruel, ao qual se deve ainda censurar o enciclopedismo dos planos de educação física e intelectual, exagerados na extensão e minguados nos pormenores da aplicação prática, a desatenção às exigências da disciplina e a brevidade da reflexão acerca da formação moral. Sem embargo, a significação histórico-pedagógica de Rabelais é relevante, já pela expressão pessoal dos temas estruturais do Humanismo, designadamente a crítica da educação tradicional, a exigência de uma educação harmoniosa do físico e do espírito, o reconhecimento do valor formativo das litterae humaniores, já por haver lançado com vigor a semente do ideal da instrução realista.


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