Apresentação

atitude intelectual não é apenas o resultado de uma reflexão no sentido de congraçar conceções antitéticas, como dialeticamente tentou levar a bom termo no seu De Ente et Uno  o «prince charmant» do Humanismo; é, ainda, uma prova do seu arreigado patriotismo e do seu entranhado amor à cultura portuguesa.              

Como professor, Joaquim de Carvalho confessa ter insistentemente procurado sugerir aos alunos que «estudar não é só aprender cousas, e frequentar uma biblioteca na época heroica que é a vida académica, deve equivaler a dialogar com Platão, ouvir Kant ou passear com Goethe no parque de Weimar... ». Quantas vezes não acompanhámos o mestre em diálogos travados no pátio da Universidade de Coimbra! Professor na aula magistral e no diálogo com os estudantes, Joaquim de Carvalho descreveu assim a sua metodologia : «Como professor, procurei incutir aos meus alunos o amor dos estudos sérios — entristecido de ver ao que nos têm levado o psitacismo e o lugar-comum. Não declamei nunca, por princípio e ódio à retórica. As minhas lições não raro tiveram o carácter de elaboração dum estudo feito perante o curso. A apresentação dos factos, a sua  

conexão, o estabelecimento do princípio geral, numa palavra, todo o processo do meu trabalho e do meu espírito, o patenteei, para que a lição não fosse dogmática».

«O amor dos estudos sérios», o combate frontal ao «psitacismo e ao lugar-comum», o professar pelo diálogo e não em perorações declamatórias e retóricas, a atitude crítica, a «conexão dialética dos factos» (históricos e sociais), o antidogmatismo — eis todo um programa que o scholar modelar de 26 anos já consegue realizar através do seu magistério universitário.    

Joaquim de Carvalho vai, porém, ainda mais longe. Ele sabe perfeitamente, sendo cônscio da sua cidadania, que na Escola não devem entrar germes de pathos perturbador da serenidade intelectual e que, no aprendizado de uma autêntica ciência crítica, deverão impor-se soberanamente «a independência e a liberdade», como sublinha : «Se querem que façamos cursos de política partidária, tenham a coragem de o dizer. Os meus 26 anos, altivos, que não conhecem outra coação que não seja a da verdade, a do dever e do respeito às leis justas, é que nunca sacrificarão nas aras de qualquer "mosca da praça pública" em que falou o Zaratustra de Nietzsche». E logo após, sem transição : «Converter as Universidades em organismos políticos, no correntio e jornalístico sentido da palavra, sobre ser uma monstruosidade pedagógica, é um crime nacional e um atentado à razão. Sob essa aparência calma de convergência de opiniões esconder-se-á o cancro que corroerá a cultura. Que a República se defenda é justo; mas quando essa defesa vicia a atmosfera serena da cultura estrangulando ou cilindrando o espírito, que é independência e liberdade, é abominável, tanto      

ou mais que roubar a vida». Estas palavras, ardorosamente escritas, são ainda hoje tão atuais como em 1919. A ciência autêntica funda-se na plena independência e numa plena liberdade intelectual. Sem independência e sem liberdade do espírito não há ciência nem existe cultura, não há mentalidade crítica nem criatividade científica.         

O jovem professor da Universidade de Coimbra estabelece já, em A minha Resposta, o seu programa de atuação magistral, pedagógica e científica. Se pôde realizar a obra incomparável que levou a bom termo na sua não longa vida, foi justamente por haver sido sempre fiel a este ideal de investigação livre e de independente criticismo científico.   

Sendo um depoimento, este texto é igualmente um manifesto: o do homem livre como cidadão e professor universitário, como membro da Pólis, como pensador e como docente da sua Universidade (posta injustamente em causa por um ministro de notável talento verbal mas de ideias limitadas), como membro dedicado daquela prestigiosa comunidade de docentes e discentes que era e é ainda hoje a Alma Mater studiorum, a Universidade portuguesa estabelecida desde 1537 na cidade de Coimbra. 

3. As duas Notícias Preliminares ao Alphabeto dos Lentes da Insigne Universidade de Coimbra desde 1537 em diante e as Memórias da Universidade de Coimbra ordenadas por Francisco Carneiro de Figueiroa, com serem breves apresentações, nem por isso oferecem menor interesse cultural, razão por que não podiam deixar de figurar neste volume. Para levar a bom termo a composição das suas Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra — escreve Joaquim de Carvalho — serviu-se Leitão Ferreira de «coletâneas ou reportórios» que lhe foram de «socorro e préstimo». Se «os Excerptos, frequentemente citados no Alphabeto» — continua — estão «ao que parece, hoje perdidos», e se «As Memorias avulsas pertencentes à Universidade de Coimbra, constituídas por dissertações menores, de redacção mais ou menos            

definitiva», se integram «no lugar adequado das Noticias Chronológicas»         

o Alphabeto dos Lentes merecia ser, como de facto foi, editado em 1937. O autor da Notícia Preliminar explica aí como serviu de texto para a edição o manuscrito do Alphabeto existente na Biblioteca da Universidade, não obstante os seus defeitos e lacunas, que puderam em parte ser corrigidos, colmatados e completados pelo manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa. Embora com dúvidas sobre se, reconstituído na medida do possível, mesmo assim não se terão perdido alguns capítulos, valeu efetivamente a pena tê-lo publicado.   

A segunda Notícia Preliminar é igualmente valiosa. Joaquim de Carvalho reconhece «a menoridade» das Memórias, mas nem por isso deixa de reconhecer também «a posição singular que ocupam na bibliografia histórica da Universidade de Coimbra» ". Sendo «a primeira tentativa de narração histórica da Universidade» padece no plano científico, como escreve                o professor coimbrão, dos defeitos da erudição setecentista, que o seu apresentador identifica com «a carência de ideias gerais, a deficiência explicativa e a exiguidade da problemática». Mas, por outro lado, caracterizam-nas uma modelar probidade científica, um não frequente rigor na «exação dos factos», base indispensável para que toda e qualquer construção intelectual seja verdadeiramente sólida.    

Joaquim de Carvalho esboça uma síntese da biografia de Carneiro de Figueiroa, prestando homenagem às suas virtudes de investigador sagaz e de competente administrador. Foi no seu reitorado de vinte e dois anos que       

se concluíram as obras da joanina Biblioteca da Universidade. Servidor devotado da prestigiosa Alma Mater, Carneiro de Figueiroa bem merecia que o seu texto fosse editado, embora, como escreve o apresentador, se possam «opor cautelosamente reservas e dúvidas, à fidelidade do copista que tresladou a cópia do original».             


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