Apresentação

Nestas duas Notícias Preliminares demonstra à saciedade Joaquim de Carvalho não apenas a sua segurança de informação erudita e a cautela metodológica que é apanágio de todos os seus trabalhos mas ainda a sobriedade e a medidas paradigmáticas com que redigia os seus prefácios, sempre limitados ao essencial. Nos seus juízos críticos só era severo perante a falta de seriedade científica e, não raro, sobretudo perante trabalhos de jovens estudiosos, sabia dosear os reparos com o estímulo generoso e até equilibradamente encomiástico. A sua generosidade — que não era de modo nenhum expressão de um laxismo de avaliação crítica — patenteava-se igualmente perante os antigos contributos intelectuais que fossem destituídos de uma exigência metodológica moderna de rigor, porque o homem de ciência conseguiu sempre situar-se na perspetiva histórica adequada, sabendo que não é científico apreciar o passado à luz dos critérios e das categorias do presente.

4. O Prefácio ao Catálogo de Manuscritos (Códices 2205 a 2309) — Apostilas de Filosofia. I - Lógica por Abel Lopes de Almeida e Sousa oferece, como todos os escritos de Joaquim de Carvalho situáveis num plano de síntese especulativa, o maior interesse. Com efeito, não sendo possível ao investigador conter a sua vastíssima informação erudita num espaço verbal necessariamente exíguo, porque aí não cabiam as razões probatórias que essa copiosa informação lhe fornecia, era-lhe forçoso recorrer a um razoamento teórico 

e dialético que suprisse, pela força dos argumentos, a impossibilidade de conexar e coordenar factos concretos. É predominantemente nesta área que surge como expositor de sínteses. Este Prefácio de cinquenta linhas, que não deve ultrapassar os 2750 signos, aí está a provar como o historiador das ideias sabe dominar a formulação do juízo numa breve arquitetura de razões que se concatenam e articulam, as quais não precisam da profusão quantitativa mas apenas de uma expressão qualitativa para forçar a convicção.

O discurso, lucidamente explanado com indesmentível eloquência (de argumentos, que não de palavras), impõe-se-nos por uma motivação forte e é suscetível de desdobrar-se analiticamente:

1.) Aí se reconhece que  «a História da Filosofia em Portugal é uma disciplina» que exige uma investigação exaustiva «no estudo das origens, na expressão peculiar e no exame intrínseco das conceções filosóficas nascidas ou transplantadas para Portugal, dado que a história das filosofias nacionais é como um processo de introspeção coletiva no qual os povos a si próprios se conhecem nas suas tendências e repulsas intelectuais».

2.) Essa «investigação reclama o amplo domínio de numerosos factos individualmente consistentes e relacionados com zonas diversas da realidade histórica».

3.) «Pelo menos na hora atual, essa pesquisa não pode tentar-se sem o prévio inventário dos factos biobibliográficos, ponto de partida, sem dúvida obscuro e fatigante, mas absolutamente necessário [...]».

Não é apenas, portanto, o filosofar mas a História do Filosofar que virão a converter-se em vazio psitacismo se não forem enriquecidos por um conhecimento exaustivo da realidade factual e histórica. Uma filosofia que prescinda dessa realidade e portanto do homem histórico em si mesmo e na situação que o define na vida associada, acabará, com efeito, por ser puro exercício de palavras mesmo que se arrogue, na pia ilusão de estabelecer princípios, conexar conceitos e articular juízos dialeticamente encadeados. É o reconhecimento provado de que o ensaísmo só em casos excecionais se pode impor como pesquisa científica. Para se erguer amanhã uma história do pensamento português, isto é do pensamento que, desde as origens, se estabeleceu ou criou em Portugal, é indispensável partir do trabalho especulativo das correntes filosóficas e teológicas expressas no vasto manancial arquivístico e bibliográfico. Sem um domínio crítico ou uma triagem suficiente desses textos e documentos, tudo o que haja de escrever-se ou de congeminar-se ou só de propor-se não passará de um discurso vão.

Daí os elogios justíssimos dirigidos por Joaquim de Carvalho a Abel Lopes de Almeida e Sousa cujo «valioso contributo» é um ponto de partida necessário para que os estudiosos do pensamento crítico e filosófico hajam de levantar um edifício sólido sobre a história do filosofar em Portugal. Ele soube vencer os obstáculos a que já no século XIX se referiu Lopes Praça; «venceu — como escreve o professor de Coimbra  - estas e outras dificuldades, presenteando-nos com esta primeira parte do seu árduo trabalho em termos que todos os investigadores desta repartição da Biblioteca da Universidade lhe serão gratos, e cujo respeito pelas boas normas da exatidão e da investigação escrupulosa e sem pressas vaticina à sua obra, quando completa, lugar de honra na bibliografia nacional». Transcrevemos estas palavras com tanto maior júbilo quanto é certo que também nós, quando estudante em Coimbra, beneficiámos dos conselhos e sugestões do Dr. Almeida e Sousa, espírito cultíssimo, de uma curiosidade intelectual e de um apetrechamento metodológico que bem podia e ainda pode dar lições a alguns lentes da prestigiosa Alma Mater e de outras Universidades igualmente prestigiosas. Colaborador de Joaquim de Carvalho e de alguns seus colegas do magistério, o Dr. Almeida e Sousa bem merece este tributo de uma sincera gratidão, homenagem ao seu valor de bibliógrafo insigne e de investigador, louvor à sua sempre disponível generosidade pela ajuda ministrada a tantos investigadores. O maior de todos foi porventura aquele que, neste Prefácio, tão merecidamente o elogia.

5. A parte mais vultosa e importante deste volume é formada pelos Aditamentos e Notas às «Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra» escritas pelo beneficiado Francisco Leitão Ferreira, não na sua globalidade, o que seria obviamente impossível, mas numa seleção que, como não podia deixar de ser, concerne apenas os contributos de investigação e de reflexão originais de Joaquim de Carvalho. Foi forçoso prescindir da transcrição de todos os documentos respeitantes à Universidade e dos seus vários regimentos e regulamentos, dos textos integrais e seletos de alguns humanistas como Buchanan, Diogo de Teive, João Fernandes, António Luís, Inácio Morais, António Cabedo e outros, da sua bibliografia, assim como da citação de largos e menos largos passos colhidos, sempre com rigoroso critério e oportunidade, em obras de notáveis investigadores como Teófilo Braga, Teixeira de Carvalho, Silva Carvalho, Braamcamp Freire, António de Vasconcelos, José Maria Rodrigues, Mendes dos Remédios, Sousa Viterbo, Maximiliano Lemos, Fortunato de Almeida, Guilherme J. C. Henriques, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Joaquim de Vasconcelos, Gonçalves Cerejeira,

Pedro de Azevedo, Marcel Bataillon, Mário Brandão, Luís de Matos e outros. Mais de três centenas de excursos eruditos contendo documentação arquivística e textual foram, assim, eliminados, para que apenas 261 aditamentos e notas, exclusivamente integrados por pesquisas originais e reflexões crítico--bibliográficas aparecessem num texto coerente, progressivamente explanadas e numeradas. Alguns desses aditamentos e notas são simples informações sumárias; outros fundam-se em breves transcrições documentais arquivísticas ou textuais (que por serem breves se não eliminaram); mas não poucos esboços representam amplas pesquisas sinteticamente monográficas, como já de início sublinhámos. Talvez valha a pena, sendo impossível dar deles uma descrição suficiente mesmo em resumo, classificá-los sumariamente numa síntese rápida.


?>
Vamos corrigir esse problema