Notícia preliminar às memórias da Universidade de Coimbra ordenadas por Francisco Carneiro de Figueiroa

As Memorias da Universidade de Coimbra, agora dadas à estampa pela primeira vez em volume independente, foram remetidas pelo seu autor à Academia Real da História Portuguesa para servirem de informação e subsídio à dissertação que o académico Francisco Leitão Ferreira preparava e parcialmente publicou em 1729, com o título Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra. Primeira parte, que compreende os anos, que discorrem desde o de 1288 até princípios de 1537.

As Memorias lograram o seu destino imediato; Leitão Ferreira, como já observou Barbosa Machado  aproveitou-as largamente, citando-as sob o título de «Informação do Senhor Reformador», umas vezes para decidir opiniões controversas, outras para derramar a sucosa concisão dos seus períodos em parágrafos não raro prolixos, e sempre como norte e guia na exposição das matérias.

Pelo desígnio e pelo destino dir-se-ia que as Memorias nasceram com a marca obscura das obras subsidiárias, e com efeito, assim é; mas esta feição, se as reduz à minoridade, não lhes arrebata a posição singular que ocupam na bibliografia histórica da Universidade de Coimbra. A sua integração no corpus dos historiadores universitários impunha-se; cronologicamente, representam a primeira tentativa de narração histórica da Universidade, e cientificamente, embora padeçam dos defeitos da nossa erudição da primeira metade do século XVIII, a saber, a carência de ideias gerais, a deficiência explicativa e a exiguidade da problemática, possuem o mérito, sempre atual e admirável, da probidade na individuação e exação

dos factos, sem a qual nenhuma construção alcança consistência e solidez. É que Carneiro de Figueiroa foi talvez o primeiro que investigou a documentação arquivada na universidade, e sobre ela, e quase só sobre ela, elaborou e construiu a sua obra. Moveram-no a isso a propensão erudita e o brio da responsabilidade; se aquela lhe cativou o espírito com as diligências da investigação documental inédita, este incitou-o a apresentar uma informação que não desmerecesse das publicações da Academia Real da História Portuguesa, nem deslustrasse o seu prestígio pessoal de Reitor da Universidade.

Nasceu Francisco Carneiro de Figueiroa no Porto, em 3 de Setembro de 1662; era filho de João de Figueiroa Pinto, contador da comarca portuense, e de D. Maria Carneiro de Barros. Iniciou os estudos no colégio que a Companhia de Jesus tinha na sua cidade natal; informando-nos um biógrafo que aos doze anos possuía já a língua latina e neste colégio, onde havia estudado a filosofia com o P.e João Nunes, defendera conclusões públicas em 26 de Julho de 1675. Habilitado com o curso de Artes, matriculou-se depois na Universidade Coimbra, alcançando o grau de bacharel em Cânones em 1682 e o de Bacharel em Leis em 1684. Depois de doutorado, foi eleito colegial do Colégio de S. Pedro, em 27 de Julho de 1691, e volvidos dois anos, em 11 de Novembro de 1693, lograva o despacho de nomeação de lente de Instituta, na Faculdade de Leis; posteriormente, em 7 de Junho de 1701, uma provisão régia igualava-o a lente de Código e por fim, por provisão de 23 de Março de 1703, obteve a nomeação de lente de Código, de cuja cátedra tomou posse em 30 deste mês e ano

Decorridos quase três anos sobre a nomeação de lente de Instituta, foi provido Carneiro de Figueiroa na conezia doutoral de Viseu (4 de Agosto de 1696),

 donde transitou sucessivamente para a da Guarda (19 de Julho de 1699), a do Porto (10 de Abril de 1702) e por fim para a de Lisboa (5 de Julho de 1705).

Carneiro de Figueiroa não foi apenas um professor ocupado pelos deveres da cátedra; os meros tópicos biográficos logo nos inculcam que despendeu maior atividade e granjeou mais fama no desempenho de ofícios administrativos que no exercício do magistério.

Em 28 de Maio de 1700 prestou juramento do cargo de deputado da Inquisição de Coimbra, e com esta nomeação se lhe abriu o caminho do serviço público: em 29 de Julho de 1705 transitava deste cargo para o de deputado da Inquisição de Lisboa, para onde foi residir e se dedicou ao exame dos documentos do cabido lisbonense; em 23 de Dezembro de 1709 era nomeado inquisidor da Inquisição de Lisboa, e em 22 de Fevereiro de 1718 entrava como deputado no Conselho Geral da Inquisição.

O desempenho sucessivo destes ofícios, aos quais juntou ainda o de desembargador dos agravos na Casa da Suplicação, testemunha a consideração que alcançou, e veio a culminar com a nomeação em 14 de Outubro de 1722 para o cargo de Reitor da Universidade, no qual foi honrado em 23 de Dezembro de 1728 com o título, vencimentos e preeminências de Reformador, e de cujo exercício o arrebatou a morte, ocorrida no Porto, em 8 de Agosto de 1744.

Duas obras ilustram perduravelmente o seu longo reitorado de vinte e dois anos, do qual nos ocuparemos alhures: a conclusão da majestosa e bela Biblioteca da Universidade, e a redação das presentes Memorias e respetivos complementos, o Catalogo dos Reitores, o dos Lentes da Universidade de Coimbra e o dos Conegos Doutoraes e Magistraes.

A autoria destes escritos não pode ser posta em dúvida; bastaria para a dissipar o cotejo das referências de Leitão Ferreira, que nas Noticias Chronologicas sob o título genérico de «Informações do Senhor Reformador» alude àsMemorias e aos Catalogos de Reitores e dos Conegos Doutoraes e Magistraes e no Alphabeto dos Lentes constantemente invoca o Catalogo dos Lentes.

As Memorias, o Catalogo dos Reitores, e o dos Conegos Doutoraes e Magistraes continuado depois da morte de Figueiroa por um anónimo que o dilatou até finais do século XVIII, encontram-se no presente volume, para cuja edição recorremos ao manuscrito existente no Arquivo da Universidade de Coimbra e que Luz Soriano " informa ter vindo do Colégio de S. Pedro, após a extinção deste em 1834.

O manuscrito é cópia do original, feita por mão em cuja fidelidade é conveniente opor cautelosamente reservas e dúvidas; não obstante, entendeu a Comissão diretora das publicações comemorativas do IV Centenário da Universidade de Coimbra que devia ser impresso, já porque tais defeitos não minguam o mérito do indefesso labor de Carneiro de Figueiroa, já porque cumpria honrar com a consagração que a letra de forma confere a memória de quem tão conspicuamente serviu e prezou a Universidade.

Coimbra, 1937


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