Segunda Parte - que compreende os anos que discorrem desde meados do de 1537 até fim do de 1540 (I)

«Todo o cançaço que então se tomou, he reduzido a que tinha inconvenientes a sahida dos Portuguezes a estudar fóra do Reino. Certamente não forão pela idéa de que nelle estava em seu alto ponto a-negligencia, a rudeza, o caracter Gothico. Póde seguir-se bem e mal do estudo buscado fóra da Patria com despezas avultadas, que melhor se empregarião em casa, ainda que erão compensadas com a doutrina aprendida mui apuradamente com Estrangeiros de levantada reputação. A economia de Estado, as rezões do Direito Público, a indole do aproveitamento entrão no problema, cuja equação não he deste lugar. Fosse provavel ou demonstrativamente bem mudada a Universidade, os motivos forão o desamparo que foi tendo a de Lisboa depois dos annos de M.D.XXV.: forão os encontros de pareceres, e senão outros cuidados, quaes na ordem politica atrazão as deliberações, e muito mais os cumprimentos dos projectos. especies relativas aos que tem contado a mudança no anno de XXXIV. e noticias gloriosas á Universidade de Lisboa se podem ver nas Memorias da Universidade de Coimbra do Beneficiado Francisco Leitão Ferreira desde pag. 400. [Nesta edição, vol. I, p. 4681. Com tudo o systema Theologico de que tratâmos he estabelecimento mais antigo por ser feito no espirito dos estudos de Lisboa e do insigne Varão Fr. Bras de Barros, que depois foi o primeiro Bispo de Leiria, cujos Projectos literarios a outros assumptos se achão na Chronica dos Conegos Regrantes de D. Nicoláo de Santa Maria, L.X. Cap. V. quando se trata dos estudos do Collegio de S. Miguel.

«Em poucas palavras do Plano se encerra grande succo. Diz assim o sabio Varão Fr. Heitor Pinto fallando com o Cardeal Henrique antes do Commentario a Isaias: Ego cum fuissem ah ineunte aetate in lite ris Latinis versatus, & postea nonnullos annos & Salmanticae & Conimbricae juri civili operam dedissem... ingressus sum Ordinem Divi Hieronymi, ubi viget sou-tarja quaedam tranquillitas & religionis observantia. Et interfluxis nonnullis annis missus a primate meo totius ordinis moderatore ad Ordinis Collegium tanquam ad bonarum artium mercaturam, mea studia longo intervallo intermissa revocavi. Ibi octo continuos annos avide & ardenter dedi operam lite ris, in quibus totum cursum & Philosophiae & Theologiae sub excellentissimis praeceptoribus virtute & sapientia praestantibus perfeci, & utrius que linguae Graecae & Hebraicae notitiam comparavi. A historia literaria do tempo quando se escreva unida, e com a Filosofia competente, mostrará descobrimentos mui particulares e bem desempoados, que authorisem a Proposição de que a Universidade de Lisboa era digna porção da Republica das Letras.»

O Dr. Teixeira de Carvalho, com argumentos diversos, chegou à mesma conclusão de Fr. Manuel do Cenáculo. Escreveu o erudito investigador no artigo Pedro de Mariz e a livraria da Universidade de Coimbra (em Boletim bibliográfico da Universidade de Coimbra, vol. I, 1914, pp. 534-535):

«O último período da existência dos Estudos Gerais não foi, como muitos pretendem, uma fase de decadência que tivesse provocado a transferência da Universidade para Coimbra. Pelo contrário, a nós afigura-se-nos que a Universidade estava em plena remodelação por um fenómeno de vida própria, que nada devia ao favor real que nos parece bem afastado da instituição, apesar dos solícitos procuradores que trazia na corte e que, por vezes, como no caso de Nicolau Lopes, se convertiam em seus inimigos.

«A transformação dava-se tanto materialmente no cuidado com que se reformavam os velhos edifícios, como no espírito científico, na indecisão que provinha da luta que levavam travada os sectários da Universidade de Paris contra os da Universidade de Salamanca.

«As instalações universitárias, em ruína, refaziam-se, regularizando-se os terrenos por compras ou doações. A velha capela, onde chovia, fora coberta de novo, ladrilhada com suas estrelas de azulejo e decoração central. Refizera-se o altar, comprara-se um relógio novo, construíra-se o alpendre, em que os lentes deixavam recolhidos os cavalos nos intervalos das lições, iam-se fazendo as casas que o estatuto mandava dar a alguns funcionários da Universidade.

«No espírito científico, havia a indecisão dependente, como dissemos, das opiniões dos professores que tinham vindo de Salamanca ou de Paris e que naturalmente defendiam as constituições das universidades em que se haviam criado.

«Tudo parecia indicar a preponderância futura do espírito parisiense que naturalmente deveria ser o orientador da nova reforma que se adivinhava, tanto pela renovação que se sentia na Universidade, como pelo que constava das ideias de D. João III.

«Mestre Gil, o médico da corte que já Gil Vicente deixara caricaturado no Auto dos físicos, graduara-se em Paris. Em Paris estudara também Francisco de Melo, reitor da Universidade, o que sabia da sciencia avondo. Era a Universidade de Paris que D. João III queria também seguir na organização dos novos estudos.

«Havia porém, entre os novos de mais reconhecido valor então na Universidade, muitos discípulos da Universidade de Salamanca, e foram esses os que mais tarde se vieram ilustrar na de Coimbra, criada pela de Paris, na admiração que por os Gouveia tinha D. João III.           

«Esta vida, que se sentia então nos Estudos Gerais, ia modificando as instalações e traduzindo-se por maior atividade científica, mais cuidado na conservação dos velhos privilégios, maior defesa das suas regalias.»            

A nosso ver, o ensino universitário reclamava por então uma reforma, ou mais precisamente a atualização do plano de estudos; impunham-na as novas necessidades da cultura renascente, que ultrapassavam o elenco das disciplinas estabelecidas pela organização manuelina, e o próprio orgulho pátrio, que não podia tolerar sem desdouro o confronto com a pujança das Universidades de Alcalá de Henares e de Salamanca. É óbvio que a reforma poderia ter sido levada a cabo em Lisboa como o foi em Coimbra, após a transferência da Universidade; mas o problema que cumpre examinar é se a transferência teve como ração justificativa a decadência científica do Estudo lisbonense.      

Nas transcrições feitas, não se encontra a demonstração cabal de que a Universidade de Lisboa não estava decadente; porém, sem embargo das suas deficiências, conjeturamos que as respetivas opiniões não distam da verdade, e, pelo menos, têm o mérito de inculcarem algumas ideias dignas de estudo aprofundado.    

Fr. Manuel do Cenáculo insistiu particularmente sobre a atividade científica, provando que o tema era digno de reflexão; com efeito, às razões invocadas, as quais são suscetíveis de desenvolvimento, podem acrescentar-se algumas outras, designadamente as que radicam na análise dos inventários da livraria do Estudo lisbonense, reproduzidos no vol. I das Noticias Chronologicas, pp. 887-894, no exame dos escritos de Pedro Margalho e Estêvão Cavaleiro, e na orientação do ensino de Mestre Rodrigo, louvado por António de Gouveia, e de João Ribeiro, o qual, é lícito supor, continuou em Lisboa o ensino da Lógica que havia ministrado no colégio de Santa Bárbara, de Paris (v. Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, I, pp. 11-314).               

Na exposição do Dr. Teixeira de Carvalho, cumpre retificar a confusão de Francisco de Melo, que estudara em Paris e de quem Gil Vicente disse que tinha sciencia avondo, com o reitor da Universidade seu homónimo (v. Not. Chron., vol. I, p. 905); este equívoco, porém, não destrói o valor da sua opinião, particularmente original na referência à competição entre os que pretendiam a Universidade reformada à maneira de Paris e os que preferiam a organização da Universidade de Salamanca.


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