1. Iehuda Leão ben Isac Abravanel, Leão Hebreu, Messer Leone ou ainda Leão Médigo, é entre os Sefardim, nos primeiros tempos da dispersão, em que raros quebraram o anonimato do ghetto, dos mais salientes pela cultura intelectual e sem dúvida o mais moderno na originalidade de doutrinas; mas a sua vida, como em geral a dos correligionários contemporâneos, aparece-nos envolta em obscuridades e incertezas. Lamentável sempre esta deficiência quando se trata dum pensador, pelo auxílio que a biografia empresta à reconstituição do seu espírito e determinação dos factores determinantes do curso do seu pensamento, nos filósofos do Renascimento é-o muito mais, dada a erudição na formação intelectual e tendências sincréticas da cultura. Esta deficiência de notícias biográficas não significa, porém, que Leão Hebreu seja um esquecido.
A contribuição portuguesa, abstraindo as notícias de alguns judeus, como Imanuel Aboab, Amato Lusitano, etc., que rigorosamente se devem considerar como fontes, e as referências incidentais ou genéricas de alguns escritores, limita-se ao artigo de Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, e às substanciosas páginas que o douto Ribeiro dos Santos lhe dedicou na II das Memórias da Literatura Sagrada dos Judeus Portugueses no Século XVI. Maior a contribuição estrangeira, nem por isso a qualidade está em equação com a quantidade, pois quem se der ao trabalho de ler Wolff Bartolocci, Rodriguez de Castro, Rossi, Munk, Keyserling, Graêtz, a Jewish Encyclopedia, Menéndez y Pelayo, Croce, Solmi, etc., tão valiosos alguns sob outros aspetos, completando ou adiantando, por vezes, em pouco mais, Ribeiro dos Santos, nem por isso encontra um verdadeiro estudo biográfico.
E a razão é simples: a escassez e secura das fontes, perfeitamente explicável pelas provações dos Sefardim nesta hora dolorosa da sua vida histórica. Abundam as crónicas, verdadeiros martirológios da raça, mas onde os indivíduos surgem episodicamente, como meros comparsas da trama de acontecimentos que os envolveram e na qual a sua personalidade se dilui ou esbate. Basta recordar, para prova, se de tal carece, a portuguesa Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, encantadora na linguagem, típica no processos…
2. Leão Hebreu nasceu em Lisboa, no seio duma família hebraica de nobilíssima prosápia, a mais influente e notável que viveu em Portugal até à expulsão.
Do ano do nascimento, até Munk, nada diziam os seus biógrafos; mas este ilustre tradutor do Moréh Nebuchim de Maimónides e profundo conhecedor da filosofia árabe e judaica, aventando como datas limites 1460-1470 — período que Ueberweg anos depois restringia a 1460-1463 —, esclareceu um pouco o problema; até que Graëtz, o conhecido historiador do judaísmo, teve a fortuna de o precisar, fundando-se numa passagem dos Versos Hebraicos, onde Juda Abravanel, rememorando a sua mocidade «toda inclinada à vida contemplativa», confessa ter perto de 40 anos em 1505. Nasceu, pois, o nosso filósofo em 1465.
Seu pai, o célebre rabino lisbonense Isac Abravanel (1437-1508), cuja biografia várias vezes feita necessita ser revista e completada em face de documentos publicados recentemente ou ainda inéditos, foi sem dúvida a figura proeminente do judaísmo no período em que viveu em Portugal (1437-1483).
Exercia este rico judeu o comércio, ou qualquer outro lucrativo ofício ; emprestava ao Estado grossas quantias, gozava uma altíssima ascendência entre os correligionários, respeitando-lhe ainda os marranos, anos volvidos sobre o exílio, a memória, como parece testemunhar Gil Vicente ; privava com a melhor nobreza; v.g. o Duque de Bragança, D. Fernando, o decapitado de Évora, a quem parece ter valido em conselhos e dinheiro para a conspiração contra D. João II, e o irmão, o Conde de Faro, com quem se carteou, em termos que denotam íntima e afetuosa amizade; era recebido na corte de D. Afonso V, de quem se diz ter sido conselheiro, e obtinha mercês e isenções régias, — autênticas derrogações da lei geral.
Ele próprio, mais tarde, quando a ressaca de perseguições o envolveu também, obrigando-o, como o judeu da lenda, a errar de país em país, de terra em terra, em demanda duma tranquilidade, que os tempos não consentiam, a despeito do valimento, sempre apetecido, nas cortes por onde pousava, saudosamente evocava este período da sua vida na terra pátria: «Habitava então tranquilamente a casa que herdara de meus pais na cidade tão formosa de Lisboa. Concedera-me o Senhor bênçãos, riquezas e honras; construíra para meu uso palácios e aposentos senhoris. Era a minha casa o centro onde se reuniam homens doutos e prudentes. Via-me respeitado nos paços de D. Afonso, um soberano poderoso e justo, que durante o seu reinado fez prosperar e conservou a liberdade aos judeus. Mantinha-me sempre ao seu lado, era o seu auxiliar e livremente entrava nos seus paços e deles saía».
A esta esplêndida vida exterior correspondia uma brilhante cultura espiritual. Rabino, doutrinando e comentando a lei na sinagoga da capital, devia ter uma formação essencialmente hebraica, como ao diante provou, fecundamente, pelas obras exegéticas e críticas —, mas não tão particularista que lhe vedasse alargar o espírito com o que constituía o património intelectual dum culto português quatrocentista.
Faltam-nos obras suas, de vulto, em linguagem, se é que as escreveu; mas pequenina como é, a citada carta ao Conde de Faro, de pêsames pelo falecimento do sogro, o Conde de Odemira, acusa pelo fundo e forma uma formação próxima-parente da dos mais típicos representantes coevos da nossa cultura. Aristóteles, a cuja síntese, sem fortes e originais interpretações, como as de Averroes ou Pomponácio, grávidas de novos rumos à crítica, tiranicamente se moldou o pensamento nacional até às brandas, evangélicas sacudidelas dos oratorianos e do barbadinho Verney, no século XVIII, lá é citado; e Séneca, a fonte mais ou menos próxima, direta quase sempre, dos nossos moralistas, tão patente no Leal Conselheiro e sobretudo na Virtuosa Benfeitoria, informa também as suas consolações e conselhos. Compreende-se assim que Oliveira Martins visse neste «homè mui rico, e muy afazemdado, e entemdido, e industrioso», como o retratou D. João II, «a exemplificação suprema» da «situação eminente que o povo, a literatura e a civilização judaicas atingiram em Portugal, particularmente sob o reinado de D. Afonso V».
3. Nascendo rico, rodeando-o no lar paterno um ambiente intelectual, não surpreende que inclinasse para «a vida contemplativa» consagrando a mocidade ao estudo. O pai ensinou-lhe os primeiros conhecimentos da literatura árabe e hebraica peninsular, familiarizando-o com a lei, e o médico português, João Sezira, amigo de Isac, iniciou-o no estudo da astronomia e medicina, — as duas ciências que os sefardim tanto cultivaram.
Nos Diálogos de Amor citam-se as sete artes liberais, constituintes do trivium e quadrivium. Teria sido a sua formação moldada nesta didática medieval, corrigida e ampliada pelo ensino tradicional das escolas judaicas? Com as parcas notícias que possuímos não é possível responder duma forma apodítica; mas nem por isso é improvável que se familiarizasse com os comentadores Maimónides e Averroes e travasse diretamente as primeiras relações com o próprio texto de Aristóteles, tão assimilado e glosado entre nós —, para o que lhe não faltavam mestres na comunidade israelita, pois é justamente nesta época que os judeus portugueses se afirmam intelectualmente, convertendo a sinagoga de Lisboa numa modesta rival das afamadas escolas rabínicas de Toledo e Córdova.
Em Portugal, portanto, como tudo leva a crer, iniciou o estudo da filosofia; e se mais tarde, arrastado pela violência de perseguições que por toda a parte assediavam os seus correligionários, ao integrar-se noutros centros de cultura mais intensa, a aprofundou, tornando-se por mais do que um título, na ordem ideológica dos filósofos judeus, um moderno, nem por isso perdeu a feição primeira dos seus estudos, tradicionalmente hebraica.
4. Maximiliano de Lemos, na erudita História da Medicina em Portugal (Doutrinas e instituições) refere um Jehudah ben Ischag Abarbanel, de Lisboa, onde nos fins do século XV exercia a clínica geral. Tudo sugere uma identificação, tanto mais plausível quanto é certo que, além do nome, época e bibliografia adrede citada por aquele ilustre cientista, Graëtz afirma que D. João II, não só confiscou os bens de Isac Abravanel, como «os de seu filho Juda Leão, apesar deste último, que era médico, possuir uma fortuna completamente pessoal». Não há, parece--nos, documento algum que autentique este facto. Não é porventura estranhável que aos dezoito anos exercesse já a medicina? Demais, a maioria dos biógrafos concorda em que só na Itália a praticou, — o que Graëtz não nega, antes sugere noutra passagem da tão celebrada História dos Judeus.
5. Entretanto, quando Juda Abravanel contava apenas dezoito anos, em 1483, as circunstâncias forçam-no a emigrar com a família para Espanha.
A tranquilidade que usufruía em Portugal comprometeu-a o pai colaborando ativa e traiçoeiramente, por interesse ou amizade, não saberemos dizer, nas conspirações contra D. João II. Hoje, em face dos documentos sobre estas conspirações, publicados por Braamcamp Freire, especialmente a sua sentença e a do genro, José Abravanel, não resta a menor dúvida da sua cumplicidade e francamente se pode afirmar, contra Graêtz e demais defensores, que longe de ser uma vítima da amizade pelo Duque de Bragança, ou um simples comparsa nos planos deste, foi um ativo colaborador e, quiçá, diligente organizador. Levar-nos-ia muito longe, afastando-nos do nosso intento, a destrinça da sua participação e culpabilidade nas conjuras; mas não podemos omitir as condições em que emigrou e as consequências que daí derivaram para o futuro da família.
Descoberta a conspiração, o rei chama-o à corte; mas iludindo ou corrompendo a vigilância do escudeiro que o devia acompanhar, em Arraiolos foge prudentemente para Espanha (Junho de 1483), onde não defrontaria uma expectativa tão incerta como a que o rei lhe reservava. Homiziado, colabora ainda na segunda conspiração, chegando a vir a Moura «pera dar aviamento a que o dito Duque [de Viseu] ouvesse dinheiro» do que ainda cá lhe ficara, entendendo-se especialmente com o genro José Abravanel. Julgado à revelia, dois anos depois da fuga, é condenado à morte em 30 de Maio de 1485 e todos os seus bens, que já não deveriam ser muitos, confiscados; mas a família, que o rei por vingança ou ardil podia reter em Portugal, nada sofreu, indo livremente juntar-se ao emigrado. Por isso, em 1483, nos aparece Leão Hebreu em Espanha (Toledo?), onde, muito provavelmente, continuou os estudos —, no que seguiria o exemplo paterno que aos trabalhos intelectuais, enquanto outros mais rendosos se não proporcionavam, consagrou os primeiros tempos do exílio, convivendo com Isac Aboab, por antonomásia o Rabi, último Gaon (mestre universal) de Castela, e escrevendo (1484) o Comentário aos três primeiros livros dos Profetas, Josué, Juízos e Samuel (em hebreu).
6. Como em Portugal, decorrer-lhe-ia a vida tranquilamente, entre livros; e mais alegremente, talvez, porque, casado, em época que nenhum biógrafo precisa, sentir-se-ia renascer num filho, cuja imagem persistiu sempre no seu espírito com dolorosa saudade. Subitamente, porém, surgia implacável, fulminante, com o fim de completar espiritualmente também a obra iniciada em Covadonga, o édito de 31 de Março de 1492, cominando aos judeus a conversão ou a expulsão até 31 de Julho —, precisamente lavrado em Granada, para cuja rendição Isac Abravanel contribuiu, com Abraão Senior, antigo conselheiro de Isabel I e rabi-mor das aljamas hebraicas, dirigindo os serviços de provisão dos exércitos.
Valendo-se do acolhimento que os reis católicos lhe dispensavam, em recompensa talvez das qualidades pessoais e interferência nas conspirações contra D. João II e guerras de Granada, Isac envida todos os esforços, movimenta todas as influências, para a revogação ou alteração do édito, conseguindo apenas um retardamento de dois dias na sua execução.
Impossibilitado de regressar a Portugal e não querendo converter-se, embarca com a família para Nápoles, onde o rei Fernando o acolhe tão generosamente que, afirmam-no alguns biógrafos, o fizera seu ministro.
As condições horríveis em que se fez o êxodo de Espanha, desde a espoliação em terra à pirataria no mar e incerteza de hospitalidade onde quer que se acolhessem, sabem-nas todos os que um dia leram alguma história dos judeus. Leão Hebreu, acompanhando o pai, não quis sujeitar o filhinho a esses perigos e sem dúvida por eles o mandou para Portugal, — aproveitando a hospitalidade condicionada que D. João II, contra a vontade dos próprios judeus portugueses, oferecia aos emigrantes de Castela —, na esperança de melhores dias em que de novo e mais seguramente o pudesse ter junto de si. Esta esperança, porém, jamais se realizou, porque alguém, se não o próprio D. João II, sabedor da sua ascendência, o mandou batizar e educar como cristão, acrescenta Kayserling, para tormento do desconsolado pai, cujo coração sangrou sempre pela perda deste filho.
Mais tarde, nos Versos Hebraicos, evocando-o, chorava a sua ausência e exortava-o a perseverar na crença dos antepassados, lembrando-lhe, como estímulo, os desgostos e vicissitudes da família. Que morreu jovem, dizem os biógrafos; mas a verdade é que em 1512 nos aparece em Lisboa um Henrique Fernandez Abarbanel. Será porventura o filho de
Leão Hebreu, ou o sobrinho que Isac Abravanel mandou de Veneza? Não tentamos uma resposta; mas seja como for a dúvida aí fica esperando uma solução que nós debalde não encontrámos.
7. Em Nápoles, onde sem dúvida gozaria, direta ou indiretamente, da esplêndida situação, que seu pai desfrutou nas cortes de Fernando I e Afonso II, viveu Leão Hebreu até à invasão francesa de Carlos VIII (1495). Porque emigraria? Não o sabemos ao certo; mas a verdade é que neste mesmo ano, separando-se pela primeira vez do pai, que acompanha o rei Afonso para a Sicília, (vid. p. 165, nota 35) estabelece-se em Génova, onde viveu até 1504. Nesta cidade, jovem ainda, morre-lhe o segundo filho, e a necessidade, ao que parece, obriga-o a exercer a medicina (donde o ser conhecido por Leão Médigo) ; mas apesar destas provações, tudo leva a crer que escrevesse neste período os Diálogos de Amor e o De caeli harmonia, e convivesse com Francisco Pico, sobrinho do célebre João Pico (vid. 10, c). Em 1504 vai a Veneza, certamente a juntar-se ao pai, e pouco depois para Nápoles, onde, a ser verdadeira a informação de alguns biógrafos, teria sido médico do «Gran Capitan», Gonçalo Fernandez de Córdova, quando vice-rei daquela cidade. Mais tarde volta a Veneza, onde escreveu os Versos Hebraicos ; mas em Dezembro (28) deste ano encontramo-lo novamente em Nápoles medicando e numa tão alta situação que Carlos V privilegiadamente o isenta, bem como a «su casa y todos los que son comprehendidos en su guiage», de todos os tributos que pesavam sobre os da sua raça, ordenando demais ao vice-rei de Nápoles que executasse este privilégio.
É este o último testemunho conhecido da sua existência. Depois perdem-se por completo, ignorando-se inclusivamente o ano e local do seu falecimento, embora em 1535 devesse ter já falecido, pois o primeiro editor dos Diálogos de Amor, Mariano Lenzi, assim o confirma: «... et obligarmi (se l'ombre obbligar si ponno) maestro Leone, havend'io questi suoi divini Dialoghi tratti fuori delle tenebre, in che essi stavano sepolti».
8. A bem pouco se resume, pois, o que de certo se sabe da biografia de Leão Hebreu. Quanto ao seu carácter, são tão escassos os elementos, que essa reconstituição necessariamente decairia na mais fantasista das conjeturas. Algumas hipóteses, porém, têm sido formuladas, quanto a nós sem realidade, mas cuja crítica, embora não alargue os nossos conhecimentos, merece uma consideração especial. Tais são: a não identificação de Leão Hebreu com Juda Abravanel, a participação de Leão Hebreu no círculo hebraizante de João Pico, conde de Mirandola, e a sua conversão ao cristianismo.
9. Que são uma e mesma individualidade, Leão Hebreu e Juda Abravanel, não oferece dúvidas, conquanto alguns o receiem afirmar e outros explicitamente o identifiquem com Leão de Modena. Só por um lapso se pode fazer esta identificação, pois Leão de Modena viveu muito depois (1571-1648) do nosso autor; e quanto às dúvidas daqueles, a longa e ininterrupta tradição, e o testemunho expresso de alguns judeus, como Amato Lusitano (10), que, pelas condições especiais em que se faz tem todo o acento dum indiscutível valor histórico, são suficientes para a desfazer. Bem mais complexo é o problema das pretensas relações de Leão Hebreu com João Pico.
10. João Francisco Pico refere incidentalmente que «Jochanan», filho de «Isacius hebraeus», fora mestre de seu tio, o célebre João Pico, que por seu turno cita, nas Disputationes adversus astrologos, um Leão Hebreu, vir insignis et celeber matmaticus quasi veteribus parum fidens excogitavit novum instrumentum, cuius vidimus canones mathematica subtilitate praecellentes. Por outro lado, Amato Lusitano (João Rodríguez de Castelo-Branco — Chabib ha-Sefardi, quando converso) que em 1560, em Salónica, tratou Juda Abravanel, neto magni illius Iehudce, sine Leonis Abarbanelij Platonici Philosophi, qui nobis diuinos de amore dialogos scriptos reliquit, encontrou apud se librum iustce magnitudinis, quem aus suus composuerat, reseruatum habebat, cui de cceli armonia titulus erat, non nisi longobardicis literis inscript'us, ct quem bonus ille Leo, diuini Mirandulensi pici precibus composuerat, vt ex eius praemio elicitur, quem librum ego non semel percurri, et legi, et ni mors immatura nepoti huic ita prceuenerat, eum breui in lucem mittere decreuera-mus, est sane opus hoc doctissimum, in quo bonus ille Leo, quantum in philosophia ualebat, satis indicauerat, scholastico tamen stilo inscriptum.
Todos estes testemunhos parecem concordar em que João Pico fosse discípulo de Juda Abravanel, o citasse e induzisse a escrever o De cceli harmonia. E na verdade não falta quem assim concluísse, como Wolf, Kayserling, a Jewish Encyclopedia e, entre nós, Ribeiro dos Santos, que, adrede, procura desfazer a dúvida que a cronologia imperiosamente gera — precipitadamente, porém, porque nem «Isacius Hebrmus» e seu filho «Jochanan» se podem identificar respetivamente com Isac Abravanel e Juda Abravanel, nem este é o Leão Hebreu que João Pico cita, nem para este ou a instâncias suas escreveu o De caeli harmonia.
a) Esmerilemos um pouco os factos, atentando sobretudo nos estudos orientais de João Pico (25-2-1463 — 17-11-1494). Ninguém como ele, na Itália cultíssima de quatrocentos, levou mais longe e num intuito tão compreensivo os estudos orientais, que fascinaram cardeais como Domenico Grimani e Egídio Viterbo e condottieri como Guido Rangoni. Foi em Pádua (1480-1482), para onde o arrastara o desejo de aprofundar Aristóteles, que se iniciou no hebreu, com o israelita Elia del Médigo, um dos mais notáveis representantes do averroísmo e que mais tarde o acompanha para Pavia (1482-1483) e Florença (1484) e por sua sugestão escreve o comentário ao De substantia orbis de Averroes (1485) e um tratado sobre o Intelecto e a Profecia (1492) 54. Mas é em 1486, após o regresso da primeira viagem a França, que João Pico intensifica esses estudos.
Ao hebreu, estudado ainda com Del Médigo, junta-se o árabe e a este o caldaico, ensinado por Mitrídates, mestre tão cioso da ciência como do discípulo. Nada exprime tão bem esta febre de orientalismo como a carta a Ficino de 6 de Setembro de 1486. Respondendo ao pedido que este lhe fizera duma tradução latina do Alcorão, dizia-lhe que em breve teria o prazer de o ler no original e que ao hebreu se dedicava com tal fervor, que ao cabo dum mês podia «nondum quidem cum laude, sed citra culpam epistolam dictare... Vide, exclama, quid possit impetus animi». E para coroar esta erudição, rara, apesar de tudo, na sua época e muito mais na sua idade (23 anos), notificava-lhe ainda a aquisição duns manuscritos caldaicos (si libri sunt et non thesauri), com os oráculos de Esdras, Zoroastro e Melchior, que, sem auxílio alheio, ansiava ler. «Vide Marsilii quce insperata mihi bona irrepserunt in sinum». É nesta variedade de estudos, que não cabia nos estreitos quadros do trivium e quadrivium, e na impressão que as disputas escolásticas da Universidade de Paris lhe teriam causado, que deve filiar-se a génese do sincretismo que o levou à redação das famosas 900 teses de omni res scibili, pejadas de erudição, mas de escassa originalidade. Até esta época, pois, Leão Hebreu não foi mestre de João Pico, nem o poderia ser porque ainda vivia em Espanha. Sê-lo-ia, porém, posteriormente?
Mal divulgadas aquelas teses, na ameaça duma intervenção papal nada cativante para o seu cândido desafio e juvenil entusiasmo, Pico emigra para França. De lá volta em 1488, por interferência sobretudo do «praetantissimus» Lourenço de Médicis e do amigo M. Ficino ", e recolhendo-se pela generosidade do Magnífico à quietude da vila Querceto, perto de Fiesola, retoma logo os estudos do hebreu. É seu mestre então Jochanan. Será este o nosso Leão Hebreu, como pensavam Wolf e Ribeiro dos Santos? De forma alguma, pois se de há muito era incertamente identificado como Johanan ben Isac de Paris, chamado em hebreu Askenazi e em italiano Alemanno, hoje essa identificação não oferece a menor dúvida, conhecidos, como são, os elementos biográficos que Perles deparou num manuscrito hebraico do British Museum. Com ele termina João Pico o estudo do hebreu, e conquanto não descure nunca o orientalismo, domina-o, porém, a suprema aspiração, que a morte não permitiu levar a cabo, de harmonizar Platão e Aristóteles, — velho problema que obsediantemente se impôs durante séculos à especulação e para cuja solução o De ente et uno (dedicado a A. Poliziano em 1491), a sua melhor obra filosófica, se pode considerar o primeiro capítulo.
b) Juda Abravanel não participou, pois, do círculo hebraizante de João Pico; será, porém, o Leão Hebreu, que ele cita nas Disp. adv. astrologos? A designação — Leão Hebreu — é assaz vulgar entre os judeus, e de per si insuficiente para revelar o verdadeiro nome próprio. Munk, a quem eram familiares os filósofos e comentadores semitas, identificava aquele Leo Hebrceus com Levi ben Gerson.
E com razão: por um lado à data em que Pico acabava, em Florença, as Disputationes (Agosto (?) 1494) Juda Abravanel vivia em Nápoles, por outro naquele rabino provençal, conhecido também durante a Idade Média por Leão Hebreu (Leo Hebraeus ou Leo Judces) e Leão de Bagnols (Leo de Bannolis) concorrem todos os elementos das lacónicas informações de João Pico. Filósofo e exegeta, acima de tudo, ocupou-se também de astronomia, já calculando em 1320 umas Tábuas do Sol e Lua, já analisando os problemas astronómicos que a Escola debatia, no livro V do Milchamot Adonaï (As Guerras do Senhor). O novo instrumento que J. Pico refere não é mais que o descobridor do que é profundamente oculto, cuja invenção e descrição L. b. Gerson apresenta naquele livro, ou a balestilha, como mais modestamente lhe chamavam os nossos navegadores e cujo conhecimento sem dúvida não deviam a M. Behaim.
Parece, pois, poder afirmar-se que João Pico não conheceu nem citou Juda Abravanel. Uma última dificuldade, porém, subsiste: o testemunho de Amato Lusitano.
c) Este, tão exato em regra nas suas notícias; não errou; erra antes quem precipitadamente o tem interpretado. É. que ao lado de João Pico há o sobrinho João Francisco Pico, também Conde de Mirandola (assassinado em 1533), que do tio herdou a paixão orientalista e a mesma tendência sincrética, porém, com menos brilho e erudição. Vivendo ordinariamente em Génova, bem poderia ter sido nesta cidade que se aproximaram —, aproximação tanto mais fácil quanto é certo que, além de os unir o mesmo culto por Platão, J. Francisco Pico necessitaria, como o tio, da convivência de um douto israelita, que o familiarizasse com a rêverie oriental.
11. Resta agora, para terminar este já longo capítulo, examinar a afirmação, relativamente vulgar, da conversão de Leão Hebreu ao cristianismo. Um erro de facto a suscitou, a simples reprodução dum frontispício a desfaz; mas nem por isso deixa de ser elucidativa a sua evolução, quanto mais não seja como documentação da fantasia humana...
Pretendia-se que Mariano Lenzi, amigo de Leão Hebreu e primeiro editor dos Diálogos de Amor (1535), porque os quisera arrancar às «tenebre in che essi stavano sepolti», se referira ao autor no frontispício desta edição, nestes termos: Leone medico di natione Hebreo et di poi fatto cristiano —, testemunho que, dizia-se, era corroborado por esta passagem do Diálogo III, que só um cristão poderia subscrever: «Coloro che'l desiano [não morrer] non credono interamente che sia impossible, et hanno inteso per le historie legali, che Enoc, et Elia, et ancor santo Giovanni Evangelista sono immortali in corpo, et anima».
Delitzsch (1840), vendo a 3.ª edição dos Diálogos, que realmente exara aquela declaração, aceitou como um facto a apostasia; mas Munk (1875), e muito antes Ribeiro dos Santos, negava-lhe todo o fundamento, porque não faltavam lugares nos Diálogos em que o autor manifestamente revelava a crença judaica. Assim, ao referir-se a Maimónides e a Ibn-Gebirol, chama-lhes respetivamente «il nostro rabbi Moise» e «il nostro Albenzubron»; para fixar a época da criação recorre ao cômputo hebraico: «Siame secondo la veritá hebraica a cinque mila ducento sessanta due, dal principio della creazione» (1502) e, finalmente, em termos inequívocos a confessa: «noi tutti che chrediamo la sacra legge mosaica». Quanto à invocada passagem do Diálogo III, Munk não receava afirmar, com Wolf que as palavras — «et ancor Santo Giovanni Evangelista» foram interpoladas por censores romanos. Leão Hebreu, portanto, à data da redação dos Diálogos (1502) não se convertera. E depois? Faltavam, como faltam ainda, todos os elementos biográficos; mas Munk justamente observava que se Leão Hebreu tivesse mudado de crenças não se compreenderiam os louvores de Guedalia Jahia, no Schalschélet haKabbala, e Azaria de Rossi, no Meor Enaim, nem o pomposo elogio de Manuel Aboab, na Nomologia…
Zimmels (1886), reconhecia também que os Diálogos acusam o mais rígido israelismo, considerando, pois, como uma fábula o pretendido testemunho de Lenzi; mas Ludwig Stein (1890), numa recensão do livro de Zimmels, não aceitou esta opinião, porquanto depois de 1520 nada mais se sabe da vida de Juda Abravanel nem se pode recorrer aos seus escritos e Lenzi, editando os Diálogos a breve trecho da morte do autor, não mentiria pelo natural receio que a fraude suscitasse protestos.
Tocco (1902) e Solmi (1903) francamente o reputavam hebreu, mas nem um nem outro resolviam a dúvida de Stein. Finalmente G. Gentile cortou cerce a questão reproduzindo o simplicíssimo frontispício da edição prínceps, por todos ignorado: Dialogi d'Amore di maestro Leone medilco Hebreo.
Como explicar, porém, o acréscimo de algumas edições posteriores? Solmi suspeitava que tivesse sido um meio para obter o publicetur dos censores romanos; mas Gentile, corrigindo, diz que o foi sem dúvida, visto que «não aparece na edição prínceps,... mas para os censores de Veneza de 1545, e não para os censores romanos de anos antes. Demonstra-o, se há necessidade doutra demonstração, a edição sucessiva de 1549 feita pelos filhos de Aldo, cujo frontispício não reproduz o da edição príncipe, mas o da edição de 1545, liberto sem dúvida do vício: Dialoghi di Amore composti per Leone medico hebreo, e nada mais...».
As palavras — et ancor Santo Giovanni Evangelista — que Wolf e Munk consideravam interpoladas pelos censores romanos, parece antes, como reconheceram Solmi e Gentile, que deve atribuir-se-lhes a autoria ao editor Lenzi. Este último, desenvolvendo explicitamente o argumento, diz: «Disso me persuade não tanto a observação gramatical aduzida por Solmi, nem a recordação, por si própria, de São João, que poderia referir-se aos que desejam não morrer, mas o achar-se esse facto nas histórias legais».
Pode assim afirmar-se que Juda Abravanel jamais se converteu, porque, sintetizando, além de cessar a razão que provocou essa suspeita, acresce o laudatório testemunho de Jahia (1535), Azaria (1534), Isac Alatrini, invocados por Munk e Solmi, e a que nós acrescentamos o de Amato Lusitano (1567) (10).
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