A obra

1. Procurei debuxar, através do seu próprio pensamento e do seu testemunho, o perfil moral e intelectual de Joaquim de Carvalho num esboço que não podia deixar de ser ligeiro e incompleto. Tentar delinear uma síntese da sua obra é tarefa impossível, mesmo para quem a conheça de longa data e com ela mantenha uma ininterrupta familiaridade. São tantos os temas focados, tão diversificados e tão numerosos os autores antigos e modernos, em tantas áreas desde a filosófica à jurídica, desde a histórico-cultural à histórico-científica, da crítico--literária à pedagógica, da sociológica à bibliográfica, que nos limites exíguos de um discurso evocativo não é possível ir além de uma simples enunciação. Enunciemos então primeiro os temas gerais que interessaram a sua indagação especulativa; depois os nomes dos autores cuja obra estudou.

Saber e filosofar, ciência e sabedoria, ideal moderno da Ciência, limites do ensaísmo, cultura castreja, a evolução da filosofia medieval portuguesa, a evolução da historiografia filosófica até ao século XIX, instituições de cultura e cultura filosófica e científica do período medieval, instituições de cultura no século XVI, pensamento português na Idade Média e no Renascimento, monumentos de arte tipográfica, o Humanismo português na época do Renascimento problemática da saudade, os Descobrimentos portugueses, a Universidade de Coimbra na Renascença e muitos, muitos outros temas que focou e desenvolveu através de investigações profundas ou de reflexões argutas, com uma mestria de domínio erudito e de método rigoroso dignos de um grande investigador e de um argumentador consumado. E numa escrita límpida e retilínea, em que a austeridade se casa com uma gestão económica do léxico, sempre apropriado, sempre adequado aos temas e às áreas disciplinares. A enunciação é, porém, muito sumária, porque seria fastidioso procurar ser exaustivo.

A enunciação dos nomes dos autores cuja obra estudou é, porém, mais copiosa. Concentremo-la apenas nos mais importantes: Platão com o Fédon, Aristóteles com a Metafísica, Clenardo, Montaigne, Galileu, Bacon, Descartes, Espinosa, Leibniz, Newton, Locke, Kant, Hegel, Husserl, Dilthey; entre os portugueses, Zurara, Isaac Abrabanel, Abraão Zacuto, Frei António de Beja, Gil Vicente, Leão Hebreu, Diogo de Murça, António de Gouveia, Pedro Nunes, Francisco Sanches, Camões, Gomes de Lisboa, Heitor Pinto, Amador Arrais, Tomé de Jesus, Uriel da Costa, Oróbio de Castro, Ribeiro Sanches, Jacob de Castro Sarmento, João Jacinto de Magalhães, Manuel Fernandes Tomás, Teófilo Braga, Antero de Quental, Eugénio de Castro, Teixeira de Pascoais e muitos, muitos outros autores e professores e críticos, sem já referir pesquisas de intertextualidade em que se referem Giovanni Pico della Mirandola, Eduardo de Hartmann, Nicoletto Vernia e quantos mais. Sobre todos estes pensadores, poetas, cientistas, teólogos, moralistas, juristas, filólogos, matemáticos, naturalistas, eruditos, Joaquim de Carvalho teve uma palavra nova a dizer, uma descoberta a revelar, uma achega bibliográfica a propor, um aspeto original a intuir. Em discursos e recensões, em conferências e artigos de síntese o Mestre ensinava dando a impressão de dialogar mesmo quando proferia uma lição na fluência das palavras que se juntavam num edifício conceptual, impondo-se no razoamento das ideias. Não tendo sido seu discípulo na Escola, sempre o fui pela leitura dos seus escritos e por tê-lo escutado muitas vezes nos encontros da Biblioteca e principalmente acompanhando-o no Pátio da Universidade. Descrevi já a sua imagem, colhida nestes encontros casuais: «Falava com voz quente, o tom era coloquial e não catedrático, discordava ou concordava sem reticências, ria-se sem reservas, atenuava as críticas que o verdor dos meus anos avolumava sem razão e só era implacável para a hipocrisia e para o fanatismo, em qualquer campo ideológico que se situassem». A personalidade era tão forte, a sua fascinação mental tão insinuante, a vocação do professor tão conforme à sua palavra, e ao seu estilo que, devendo, agora e aqui, neste esboço evocativo ocupar-me da obra, desta não é possível separar o seu autor: o racionalista está todo tanto na palavra escrita como na palavra oral e até quando o leio me ocorre logo recordar, na composição reconstituída do lugar e do tempo, a voz, o gesto, a inflexão das pausas, a mão que se interpunha nos olhos enquanto o discurso áureo deslizava. Grande pensador o considerou Jacques Chevalier. Vultos raros da ciência europeia lhe manifestaram o preito da sua admiração intelectual quando, em 27 de Outubro de 1958, desapareceu, como Marcel Bataillon, Eugenio Garin, Américo Castro, Julián Marías,Santino Caramella, Michele Federico Sciacca e ainda outros.   

Alberto Martins de Carvalho escreveu que no seu magistério era evidente o gosto por uma filosofia que fosse mais inquérito e problemática do que sede fechada de soluções.    

Na obra impõe-se sobretudo um pensamento inquiridor e interrogativo, alérgico a dogmatismos adormecedores da inteligência crítica. Dir-se-ia que na sua escrita o propósito de criar ciência coincide com o de formar a capacidade de suscitar problemas, de duvidar questionando, de questionar duvidando. E o seu ensinamento transpunha os muros da Faculdade, insinuava-se no discurso oral para se fixar de forma viva numa escrita que era toda o reflexo de uma inteligência sensível e de uma sensibilidade inteligente. O que escreve é substancial e sólido, ainda que oferecido numa forma elegante e singela. É exatamente pelo respeito da dignidade da palavra como expressão de todo o pensamento do homem que posterga a retórica do obscuro, sempre tendo em mente Descartes, seu mestre na orientação do percurso dialético, pela claridade intelectual nos leva à descoberta não de uma verdade, excluidora de outras, mas das verdades que se conexam e encadeiam, umas eleitas pelo conhecimento indagador outras suscitando o estímulo para inquirir e tentar descobrir. A pesquisa intelectual leva sempre a um porto longínquo, mas nenhum porto é definitivo e nenhum deverá ser o derradeiro. É significativo que Joaquim de Carvalho não haja considerado Montaigne como um filósofo, mas como «um perturbante semeador de dúvidas que legou à Humanidade largo quinhão da problemática que o século XVII, o século do Génio — e pensava, escrevendo-o, na ciência moderna —, aspirou a resolver»: assim ele entendia o ofício de filosofar até por parte de uma inteligência não filosófica que se interrogava perante o mistério do Universo e sobretudo perante o mistério do microcosmos que é o Homem, curioso e incerto na sua própria consciência intelectual: «Que sais-je?».

2. Joaquim de Carvalho, na sua obra, nunca deixou de ter como indispensável, antes de exercer o ofício da pesquisa — quer da reflexão do seu diálogo interior ou no seu monólogo dialógico — determinar as conexões de civilização sem as quais o exercício filosófico ficaria esvaziado de um sentido vital. Quer isto dizer que foi predominantemente um historiador? É verdade que o foi a partir de dados de um saber concreto, mas para desenvolver coerentemente, sabiamente, o seu filosofar próprio. Foi, como já se sugeriu, um eclético?

Joaquim de Carvalho não aderiu nunca a um sincretismo de tipo pluridisciplinar, porque soube optar racionalmente por um sistema de explicação metódica do real e da própria especulação sobre o real, seguindo, como confessou, uma sugestão orientadora que colheu no pensar hegeliano. Na sua própria simpatia, que é visível nos seus estudos, é já possível estabelecer a linha do seu percurso especulativo: preferia Platão a Aristóteles, embora reconhecendo que a Metafísica é, de algum modo, platónica, e o Timeu de algum modo já aristotélico; Giordano Bruno a Pomponazzi; Francisco Sanches a Pedro da Fonseca; Descartes e Leibniz aos Conimbricenses, sem diminuir o valor do tomismo e sobretudo o esforço de reconstituição interpretativa do saber escolástico. Sempre se afirmou não escolástico e não tomista, pelo amor da liberdade de pensamento, na aventura apaixonante de interrogar tanto o saber organizado como o próprio pensar organizando-se. Na sua escrita procura transmitir, como no seu discurso dialógico o havia procurado também, transmitir um logos humaníssimo e fraterno, numa comunicação que é um estímulo para uma adesão interrogativa. Não é filósofo só quem cria novos sistemas de uma exegese essencial e formal do pensar, no próprio ato vivo da sua morfologia de interrogação. Há que perguntar-se através de que formas e de que métodos e de que percursos lógicos evoluiu esse Logos, Verbum ou Sermo, como hesitando sugeriu Erasmo, na incerteza da opção filológica e filosófica.


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