Ensaios filosóficos e pedagógicos

1.ESPINOSA PERANTE A CONSCIÊNCIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA

No começo do século passado, o Padre José Agostinho de Macedo louvou em Espinosa um dos espíritos mais profundos que têm aparecido na terra; é pena que tendo tantas virtudes morais, tanto desinteresse, desse na impiedade metafísica ; e anos depois, em 1828, em plena reação absolutista, o mesmo ágil e arrebatado defensor do trono e do altar dizia do Hebreu Português que era, em geral desacreditado por aqueles que o não entendem . Volvidas umas décadas, em 1868, o erudito Inocêncio Francisco da Silva populariza com terna simpatia a biografia do nosso filósofo, resumindo a narração austera de João Colero; e no começo do século atual, Teófilo Braga termina uma conferência sobre o filósofo da beatitude exclamando: Que nos ilumine a glória imortal do Judeu Português, que tanto nos eleva! Estes homens, tão diferentes na ideologia e formação do espírito, não transpuseram nunca o limiar da construção metafísica da Ética e desta genial unificação racional conheceriam apenas as linhas gerais no grau em que todo o homem, sem quebra de cultura, as não deve desconhecer.

Os seus juízos refletem acima de tudo a ressonância e suave emoção que a vida de Espinosa, simultaneamente a melhor introdução e o melhor comentário do espinosismo, derrama com delicado eflúvio. Sendo, assim, dum escasso conteúdo doutrinal, valem no entanto como depoimentos, pela sua distância no tempo, da consciência moral portuguesa.

Motim Literário (1811), Solilóquio XIX.

O de Teófilo Braga, em especial, tem um digno sentido de simpatia e um valor histórico, de certo modo notável. No exílio da família de Espinosa o historiador da literatura portuguesa viu o holocausto à unidade confessional, repudiando em nome da história pátria e da humanidade a bárbara e estúpida expulsão dos Sephardim. A sua evocação de Espinosa está impregnada de espírito combativo, de militante livre-pensamento e apostolado democrático, — estreiteza intelectual que envolve uma limitação moral; mas tem o mérito de marcar em Portugal o termo, porventura definitivo, de obscuros e tenazes vitupérios contra o MALEDICTUS.

Não foi debalde que decorreu um século. Lentamente, mas seguramente, a consciência intelectual lusitana foi desbravando o caminho sereno da razão através da via perardua de ruínas e superstições. A esta luz, o anelo de T. Braga é o início da vitória de Espinosa na sua pátria de origem.

Há muito que a cultura e a vida civil reconhecem os direitos da religião e do espírito falarem linguagens diversas; mas para além destas inevitáveis diversidades, hoje, como ontem, o amor da paz na comunidade dos homens é o desideratum supremo, e se este amor tem de ser ditado pela razão, isto é, pela harmonia do entendimento e da vontade, Espinosa guarda intato o valor incomensurável do homem que sentiu, pensou e realizou, sob certos aspetos de eternidade, este anelo das consciências. A sua mensagem à posteridade tem, sem dúvida, feições históricas, e como tal perecíveis; mas a intimidade com o seu pensamento, fonte perene de equilíbrio intelectual e moral, inundará as almas deste amor, e por ele, em Portugal, como alhures, se alcançará a verdadeira vitória do espinosismo na medida em que a realidade consente o domínio do espírito de razão sobre o espírito de violência e o império da humanitas seu modestia sobre as desordens do egoísmo.

2. UM PEDAGOGO DO SÉCULO XVIII - MARTINHO DE MENDONÇA

No século XVIII, em Portugal como em toda a Europa, a separação entre a nobreza e o povo era profunda. Nós, portugueses, talvez não pudéssemos dizer, como outros povos, que o manto real cobria então duas populações diferentes; mas o predomínio político, o monopólio dos altos cargos de administração pública, a riqueza, o teor da vida e até a própria indumentária, conferiam à nobreza um lugar absolutamente privilegiado no Estado e na vida social. Esta situação impregnou, como era óbvio, o ensino, orientando-o no sentido de valorizar intelectualmente a nobreza, dando-lhe ao mesmo tempo a disciplina moral e cultura necessárias para bem servir o rei.

Seria interessante, retomando as observações de Ribeiro Sanches, seguir a evolução deste ideal pedagógico, que encontrou a sua mais perfeita realização no estabelecimento do Colégio Real de Nobres (carta de lei de 7 de Março de 1761). É possível que um dia ensaiemos uma visão de conjunto deste aspeto da cultura nacional, útil em si e mais ainda na ilustração prática dos seus efeitos e dos seus contrastes, isto é, a ascensão intelectual do povo e da burguesia; porém, mais modestamente, por agora pretendemos apenas examinar a posição pedagógica do melhor e mais típico representante deste ideal em Portugal, Martinho de Mendonça de Pina e Proença, autor dos Apontamentos para a educação de um menino nobre.

Dizia o Cavalheiro de Oliveira que Martinho de Mendonça era o único secular versado no conhecimento do hebreu, do grego, do latim, e várias outras línguas e teria sido reputado o melhor filósofo português do seu século se não tivesse pretendido desacreditar o sistema de Aristóteles .

Sob esta ironia amável, esconde-se um juízo verdadeiro acerca da cultura da época; mas furta-se à contraprova do nosso exame o que ele contém de diretamente pessoal.

Não chegaram até nós escritos anti aristotélicos de Martinho de Mendonça; e se porventura os escreveu, o que é duvidoso, os contemporâneos melhor informados não nos legaram quaisquer notícias.

José Gomes da Cruz no Elogio Fúnebre, recitado na Academia Real da História portuguesa, da qual Martinho de Mendonça foi titular, sacrificou à ênfase retórica a individuação dos factos, não nos deixando entrever, através das referências sumaríssimas ao seu espólio literário, qualquer escrito de carácter filosófico; e Barbosa Machado, seu consócio na Academia, biografando-o na Biblioteca Lusitana, também os não aponta.

A sua atividade académica, quer na Academia dos Anónimos, quer na Academia Real da História, incidiu, quase exclusivamente, sobre assuntos históricos, e são de ordem histórica e filológica todos os livros que publicou, salvo os Apontamentos. Não é, assim, possível julgar sobre todos os aspetos, a posição intelectual de Martinho de Mendonça; mas, no entanto, o juízo do Cavalheiro de Oliveira, aproxima-se em muito da verdade. Nenhum português seu contemporâneo teve um mais largo conhecimento da Europa. Durante dois anos frequentou o Colégio das Artes de Coimbra, o que importa dizer que estudou a filosofia escolástica sob a forma que os Conimbricenses instauraram no último quartel do século XVI e dominou em abomináveis e resumidos compêndios, em todas as escolas até à expulsão da Companhia de Jesus. Não concluiu, porém, o curso, porque trocou, no terceiro ano, Coimbra pela casa paterna, a quinta do Pombo, próximo da Guarda. Aqui, diz o seu panegirista na Academia Real da História, «recebeu as primeiras luzes das matemáticas, investigou os princípios da língua grega, que sempre lhe mereceu particular desvelo, observou os elementos do maquinismo — isto é, da física — e aprendeu as lições de direito público, em que ao depois se aperfeiçoou e distinguiu». Precipitava-se no estudo «com tanta veemência, que teve preceito positivo de seu pai para se apartar da comunicação dos livros», porém o ardor do estudioso venceu as recomendações paternas. Este autodidatismo, meramente livresco e desenvolvido por demais no isolamento duma província onde os estímulos intelectuais eram insignificantes, não se compadecia com as ambições do seu espírito, e «impaciente ideou sair da casa de seus pais a buscar nos reinos estranhos a comunicação dos sábios, que considerou precisa para a perfeição dos seus discursos». Obtida a autorização paterna, sai de Portugal, percorrendo a Espanha, Itália, França, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Polónia e Hungria. Na Alemanha aproxima-se do Infante D.S Manuel, irmão de D.S João V, servindo-o como mestre de matemática e «outras sciencias» e como companheiro de armas, pois ao seu lado se achou, na guerra da Hungria contra os Turcos, no cerco de Belgrado (1718), onde a sua bravura foi louvada pelo Príncipe Eugénio de Sabóia e pelo Conde de Tarouca, e acerca do qual publicou em Leipzig (1718) a Expiditio Belgradensis sub auspiciis Eugenii Francisci Principis Sabaudii.


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