Ter visto Leibniz na concreção real do indivíduo e do meio que lhe foi dado viver, e ter ensinado, nestas páginas como em todas que escreveu, que há essencialmente uma só história, que é a do homem vivente na conjuntura do seu tempo, a qual pode especificar-se num sentido predominante, como o científico, o político, o filosófico, o artístico, o social, etc., mas sem nunca perder a perspetiva dos demais sentidos que por igual irrompem da vida e configuram a época, constitui o mérito deste livro, que, como todos os livros que o são de verdade, brota de dotes pessoais e se nutre de ideias gerais.
Os dotes dão pelo nome de dom de penetração histórica, isto é, a capacidade de reviver o passado com a intimidade e introrsão com que se vive o presente; e as ideias gerais radicam numa teoria do conhecimento histórico. Os dotes podem ser admirados, mas são intransferíveis como tudo o que é subjetivamente individual, mormente quando exprimem, como no caso do autor deste livro, o raro privilégio de captarem todas as formas de pensamento e de sensibilidade com imediata pureza; as ideias gerais, com serem do pensador que as descobriu e lhes deu relevo, tornaram-se, porém, património comum.
Património comum e, mais do que isso, seiva do nosso tempo, porque Guilherme Dilthey é, porventura, o filósofo de mais profunda e vasta influência atual, aliás mais subjacente que ostensiva. A sua obra corre mundo em traduções, nas quais sobressaem as de língua castelhana, sucedem-se em toda a parte os ensaios e estudos sobre o pensador, e não lhe falta a glória dos verdadeiros Mestres —, a continuidade de discípulos da estatura de Bernard Groethuysen, que, além do ingente esforço na compilação dos Gesammelte Schriften, submeteu à prova uma das conceções diltheyanas, mostrando que o homem a que chamamos burguês viveu primeiramente como emoção, no século XVII, o que só mais tarde se haveria de teorizar e exprimir como ideário e mundividência.
Martin Heidegger e Nicolai Hartmann não escondem o que lhe devem, notadamente na especificidade da gnosiologia histórica, e todos, filósofos e historiadores, o consideram criador, teórico e prático, da «história do espírito», a recém-vinda disciplina na qual vieram a confluir algumas exigências do pensamento filosófico contemporâneo com a maturidade atingida pela historiografia.
Justifica-se: ninguém como Dilthey sondou tão profundamente o «mundo-cultural», nas respetivas raízes psicológicas, epistemológicas e propriamente históricas, de concreção temporal.
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Este é o mérito supremo do autor deste livro, cujas conceções podem ser seguidas, podem ser repelidas, podem ser modificadas ou superadas, mas não podem ser ignoradas por quem quer que defronte os mesmos problemas que ele defrontou. Daí a perenidade de Dilthey.
Tipo acabado de universitário germânico, de que para sempre ficou paradigma Kant, Guilherme Dilthey consagrou a existência (1833-1911) ao estudo e ao ensino nas Universidades de Basileia, Kiel, Breslau e, de novo em Berlim, como sucessor de Lotze (1882), onde nos derradeiros anos, na cátedra do Auditorium maximum, sentiu à sua volta o fervor que outrora congregara os entusiásticos auditores de Fichte e de Hegel.
Repartiu a incansável atividade pela história da filosofia e pela da sensibilidade artística (poética e musical), pela psicologia e pela teoria do conhecimento —, ou mais exatamente a sua investigação de historiador e a sua reflexão de filósofo obedeceram ao objetivo de esclarecerem por vias diversas o mesmo problema fundamental: a compreensão do mundo da cultura que o homem cria e acrescenta ao mundo da natureza.
Encontrara o tema no legado imenso do idealismo alemão, mas a sua inteligência admirável deu-lhe nova consistência e rasgou-lhe novas vias de acesso.
Hegel situara-se no interior do mundo cultural, construindo-o dialeticamente; Dilthey, pelo contrário, obediente ao sentido da positividade, ou mais rigorosamente de empina, que era o signo da época, e em cuja mente pulsavam as experiências da sua existência pessoal e, por genial dom de assimilação, as da vida humana na diversidade da sua fenomenologia espiritual, quis apreendê-lo e compreendê-lo na multiplicidade cambiante da própria realidade concreta.
«A vida vivida pelos homens» foi, com efeito, o ponto de partida e o objeto constante da sua meditação.
Partir deste ponto é partir do concreto e não de um princípio universal e abstrato; e porque dele partiu e nele permaneceu, a sua fundamentação da autonomia das ciências do espírito assentou numa filosofia da vida e numa psicologia descritiva, analítica, individualizante, mas tendendo para a tipificação, e a sua atitude de pendor situou-se polarmente em oposição à atitude sistemática. O seu pensamento foi um pensamento incessantemente in fieri, que jamais se deixou aprisionar por conceitos terminais e definitivos.
Deixou, assim, uma filosofia de inquirição e não a desenvolução lógica de um sistema, isto é, uma filosofia que deslinda, relaciona e põe a claro mediante a elucidação de problemas que irrompem da factualidade e não, como na Ética, de Espinosa, para escolher o exemplo mais perfeito, pela resolução de quesitos que aparecem trazidos pela correlação de implicações que se encadeiam a partir de um princípio universal e virtualmente naturante.
O seu perfil de pensador e a sua obra de escritor recortam-se nitidamente sobre este fundo de incessante problematicidade e de insatisfeita investigação; por isso, em vez de obras acabadas na traça e no remate, só legou, a bem dizer, livros inconclusos e fragmentários, de títulos modestos e aproximativos, dignos do escrúpulo exigente de quem sentia a exiguidade da vida que vivia para apreender e cingir a morfologia complexa do mundo humano.
Como Comte, que havia partido da totalidade do saber científico-natural, Dilthey partiu da totalidade da história cultural. A diversa formação do politécnico francês e do filósofo alemão ajuda a compreender, de algum modo, a divergência das respetivas ideias, mas mais importante e decisivo afigura-se-nos ter sido a disparidade de objetivos a que visaram: Comte, a reorganização da sociedade em bases científicas, Dilthey, a investigação da natureza das ciências do espírito, em ordem à fundamentação de uma «crítica da razão histórica».
Perante a existência da explicação newtoniana, isto é, o saber físico-matemático do mundo natural, e diante da realidade do mundo moral, irredutível ao mundo físico, Kant investigara na Crítica da razão pura as condições que possibilitam o conhecimento científico e submetera à análise, nos Fundamentos da metafísica dos costumes e na Crítica da razão prática, a consciência moral. Algo de parecido, na incitação problemática que não no desenvolvimento arquitetónico, se passou com Dilthey. Desiludido da atividade puramente metafísica e empolgado pela realidade atrativa das ciências do espírito, especialmente da História, cujo tratamento crítico e rigoroso assinalava um dos grandes acontecimentos do século, mormente na Alemanha, onde atingira um desenvolvimento gigantesco, o autor da Introdução às ciências do espírito (1883) e da Teoria da conceção do mundo, procurou saber em que consistia a consciência histórica e sobre que gnosiologia assentava a compreensão do passado. A «crítica da razão histórica» surgia-lhe, assim, como problema característico da consciência filosófica do nosso tempo e em direta conexão com o facto da constituição científica da História.