Ensaios filosóficos e pedagógicos

É transparente a influência kantiana — e quem pode furtar-se ao génio de Konigsberga? — quer no estabelecimento deste problema, quer no respetivo esclarecimento mediante a intuspeção reflexiva do espírito, quer ainda, de certo modo, na investigação do que torna possíveis as ciências do mundo humano; no entanto, a personalidade de Dilthey não se afirmou por haver pensado sob o impulso redivivo e tutelar de Kant, como alguns dos seus contemporâneos, — e dos grandes, da estatura de Lange, de Hermann Cohen e de Natorp. Pelo contrário; a sua originalidade reside precisamente em haver ultrapassado a diretriz kantiana, limitada e epocal, designadamente na necessidade prévia e justificativa de uma construção transcendental e, sobretudo, na conceção do homem como ser racional de estrutura constante e idêntica.

Com efeito, Dilthey, no estupendo esforço para tornar compreensíveis as produções do espírito não usou métodos introspetivos, não sondou as condições a priori do conhecimento, não examinou, separadamente a possibilidade lógica ou psicológica da poesia, da metafísica, da ciência, etc.; colocou-se no ponto de vista da contemporaneidade das próprias manifestações espirituais, procurando apreender o que elas apresentam de peculiar, de irredutível e até de mais reconditamente biográfico.

Foi então que o homem lhe surgiu, não como natureza constante, idêntica, monoexpressiva, mas como ente histórico, isto é, como ser que não só faz história, senão que é intrinsecamente temporalidade e cujos pensamentos e atos só adquirem sentido na totalidade da vida vivida.

Como qualquer animal, o homem vive num meio que lhe é dado pela Natureza e ao qual tem de sujeitar o comportamento sob pena de ser esmagado e aniquilado; mas ao contrário do animal, que sempre repete o mesmo e pelos mesmos processos, vivendo como que submergido no mundo ao qual se não pode opor, o homem, como ser histórico, converte o meio natural, que lhe é dado, em mundo cambiante e múltiplo, mediante a ciência e a técnica, a objetivação dos valores e a unidade da visão metafísica ou da configuração simbólica da poesia e do mito.

Daqui, a impossibilidade de haver história no dinamismo concreto, de se pensar qualquer conceção sintética, seja metafísica, seja científica, quando geral, e ainda de se intuir ou criar uma interpretação poética da existência, sem um ponto de vista primário e fundamental acerca do mundo. É da ideia do mundo, mundividência ou cosmovisão (a palavra pouco importa), cujas raízes arrancam diretamente da própria vida, que cumpre partir como suporte e alento das atividades espirituais. É ela que impregna a filosofia, a arte, a ciência e as convicções de qualquer sorte e índole, e porque se apresenta múltipla e diversa no decurso do tempo e, no mesmo tempo, de homem para homem, a «vida vivida pelos homens» não pode ser explicada pelos métodos e categorias das ciências físico-naturais.

Na lição inaugural do seu magistério em Basileia, em 1867, Dilthey logo anunciou a pretensão de fundar uma ciência empírica dos fenómenos espirituais, e, com efeito, as porfiadas vigílias da sua longa vida de quase octogenário foram aplicadas ao intento de estruturar a autonomia das ciências do espírito, arrancando-as à consideração mecânico-racional das ciências da Natureza.

Comte havia sido o pensador isolado e até isolante no rigorismo exclusivista das ideias, que ora apresentava como resenha ora como prospeto, e sempre enquadrava em conceções gerais, como, por exemplo, que as filosofias anteriores tinham sido modos de ver parciais, que a metafísica cedera definitiva e totalmente o lugar ao seu Positivismo e que a Humanidade era o termo da vida cósmica.

Como homem do seu tempo, Dilthey reconheceu a inutilidade da reflexão metafísica como tal e a feição temporal e parcelar da sucessão das filosofias; mas contrariamente a Comte, cuja conceção do mundo e da vida se apresentava como definitiva e terminal, o seu pensamento orientou-se no sentido de compreender o mais ampla e precisamente possível a gama variadíssima das manifestações espirituais, cuja compreensão total daria a «filosofia das filosofias».

«O homem só se conhece verdadeiramente na história e não pela introspeção», dizia, e este pensamento, que foi uma das ideias diretrizes de Dilthey, não significa a ilegitimidade da introspeção.

Longe disso. Dilthey jamais perdeu o ensejo de afirmar que só a experiência psíquica é primordial, imediata e direta, não hesitou nunca em pôr a claro o erro intrínseco da conceção da psicologia associacionista à maneira de Spencer, de Taine, de Wundt, e também nunca esmoreceu no esforço constitutivo de uma psicologia descritiva e analítica, da qual deixou páginas admiráveis, penetrantes e, por assim dizer, normativas.

Significa, à letra e precisamente, que a alma, como tal, é uma abstração, e que o espírito só se revela e dá a conhecer na variedade das suas manifestações. O que somos, só o podemos saber pelo que o homem tem sido ao longo do tempo e na trama das circunstâncias, e não pela sondagem introspectiva de quem apenas observa a sua ipsidade. Por isso, as atitudes e estruturas fundamentais do espírito, assim como as suas possibilidades virtuais, só se captam na objetivação histórica, mediante o esforço compreensivo que as reviva na respetiva peculiaridade irredutível.

O mundo só se nos torna presente como vida, e como cada indivíduo vive, intransferivelmente, a sua própria vida na conjuntura que lhe é dado viver, o homem é um ser histórico que se apresenta sob certas formas de realização concreta e de possibilidades virtuais. A introspeção, por lúcida e profunda que seja, apenas proporciona o conhecimento de uma determinação ou maneira de ser limitada; a compreensão histórica da fenomenologia espiritual, pelo contrário, na gama variada e poliexpressiva das suas concreções, ensina incomparavelmente mais, e quando levada a cabo em extensão e profundidade constitui verdadeira autognose do espírito.

Só a história nos pode dar, assim, a totalidade da natureza humana, mediante a morfologia do comportamento da consciência e a diversidade estrutural das conceções do mundo, mas o acesso ao mundo histórico--cultural não é fácil, nem o respetivo conhecimento se opera de maneira idêntica ao conhecimento do mundo físico.

O mundo natural explica-se; o mundo histórico, compreende-se: naquele, a razão explica, e logra alcançar, por vezes, a ciência; neste, a razão, que jamais pode fazer comparecer perante o seu tribunal judicatório a totalidade da vida, compreende, porque o objetivo do seu saber, que não é em rigor, a ciência mas a hermenêutica, consiste em desentranhar da factualidade das expressões a vivência que lhes deu ser, ou por outras palavras, surpreender na letra ou no documento coisificado o espírito que o animou.

O acontecer histórico-cultural — nesta expressão se abrangem os produtos ideais e os tangíveis da atividade humana — e a vida espiritual donde ele arranca, possuem como características peculiares, que os separam irredutivelmente dos objetos físicos, a temporalidade irreversível e a concreção mais ou menos densa de uma atividade vital, de um sentido ou significação. A verdadeira substância da História reside mesmo no sentido ou significação dos acontecimentos; e, consequentemente, o saber histórico-cultural não é mero saber de objetos, como no mundo da natureza, mas um saber que vai da expressão ao expressado, dos materiais inertes à vida que os alentou, da letra ao espírito.


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