Ensaios filosóficos e pedagógicos

Como é possível ressuscitar a vida pretérita e passar dos documentos, dos sinais e dos testemunhos, coisificados e inertes, para o espírito que lhes deu ser e para a significação mais ou menos intencional que encerram intrinsecamente?

A resposta de Dilthey não foi metodológica, nem consistiu em dizer como deve ser o conhecimento histórico. É essencialmente epistemológica, isto é, diz como é possível o compreender histórico, e a resposta, original e clarividente, consistiu em mostrar que as coordenadas ou categorias do conhecimento do mundo humano são a vivência, dado originário e fundamental, que não é idêntico a intuição, mormente entendida no sentido bergsoniano, a significação, a expressão e a compreensão.

A obra de Dilthey é imensa, — não propriamente na extensão, com ser vastíssima, mas no que desperta e na maneira como incita o leitor a adaptar-se ao ritmo do seu pensamento, sempre guiado pelo alento que dá vida à concreção das conceções e do acontecer humano. Esclarece, rasga horizontes e, sobretudo, ensina a ser modesto. Mostra, sem o sorriso desanimado do cético, que a filosofia é uma tentativa que parte de dados particulares, pessoais e vividos, para conceber e cingir o universal- para desvendar o que está latente no ser das coisas, ideais ou reais., sempre uma construção pessoal, e só pessoal, de certo estilo e ritmo mental, — havendo como é óbvio, tantas construções, isto é, formas de conceber o mundo, quantas as maneiras possíveis de pensar o todo com alguma coerência lógica e alguma consistência científica, e tantos problemas quantas as incidências da dúvida ou da inquietude. Não há, pois, uma só filosofia verdadeira nem uma só conceção do mundo, embora todas tenham por denominador comum a ideia de unidade mais ou menos sistemática, — e não há porque o mundo como objeto pensável não pode separar-se do pensamento que o pensa. Quer queiramos quer não, somos, individualmente, determinações limitadas da natureza humana — donde o ensinamento profundo de que cada pensador apenas encarna uma das várias possibilidades do sentir e do pensar, e lhe cumpre procurar nas demais maneiras e possibilidades o que lhe falta para corrigir a feição fragmentária da sua existência pessoal.

Este é o valor do pensamento de Dilthey, para quem quer que medite e sinta inquietudes filosóficas. Para nós portugueses, porém, ele possui ainda outro valor, acentuadamente tópico e atual: o de arrancar a investigação histórica ao trato de alguns barbarismos.

Estou longe de pensar que se façam gravitar os acontecimentos só em torno do homem, e que se abandonem os métodos objetivos, como os concebeu e praticou Herculano. Há temas e assuntos que de algum modo transcendem o homem, — e que os não houvesse, já se torna intolerável, por enfadonha, a teimosia no jogo birrento da História e da Contra-História, ou seja o desatino das apologias e das diatribes em torno de uns indivíduos que tiveram de viver o seu tempo, que já não é o nosso.

Todos pretendemos uma maneira de historiar que compreenda o acontecido sem o desvitalizar nem o desvirtuar, embora divirjamos, mais ou menos, no caminho a seguir e nos respetivos fundamentos teóricos.

Solicitam-nos critérios diversos e começam mesmo a opor-se conceções antagónicas de «novos» e de «velhos», ou por outras palavras, a explicação do acontecer histórico mediante a redução a determinantes diversas, para uns de índole idealista, para outros, materialista. No fundo, divergência sobre os factores e coincidência na estrutura lógica, que vem a ser a subordinação do transcurso histórico a um factor que não é histórico; porém, nenhum historiador pode alhear-se do grande debate, que põe em jogo a conceção da vida e o rumo da cultura, pelo menos para uma geração. A opção impõe-se, isenta como todos os atos de sinceridade, mas creio que a decisão consciente não é possível sem que a razão serena se haja defrontado com o pensamento de Dilthey, isto é, com o rumo problemático e temático que imprimiu a teórica da História, compaginando-a, por demais, com os recentes rumos da epistemologia e da ontologia.

Sei de sobra que se faz só caricatura quando se adapta o espírito nativo a estruturas e ritmos intelectuais forasteiros ou se transplantam sistemas de ideias nascidos noutro clima — e que o não soubesse pela razão que discorre sabê-lo-ia pela intuição do sentimento terrantês. O que importa é o filosofar e não a adoção de uma filosofia, ou por outras palavras que se não continue a viver sob a sensação de desterro de um quimérico reino da inteligência, por se haver empreendido a difícil e arriscada tentativa de se pensarem os pensamentos com austeridade e autonomia. Trata-se de pensar com índole nativa, e essa hora só soará ao cabo de esforços porfiados e escrupulosos, sem mistificação nem vassalagem, sem vozes de milícia nem engodos de suborno; e enquanto ela não soa, há que repensar com o suor do nosso rosto os problemas de hoje e de sempre, para que se quebrante a velha balda militante, se desentorpeça a sonolência que nos ficou da indigestão positivista e, acima de tudo, se alcance a temperatura que esterilize à nascença os germes da simulação pedantesca e da ignorância atrevida.

Coisas difíceis e delicadamente frágeis, com cuidados de todas as horas, como tudo o que é pessoal; mas não haja dúvida que se forem amparadas com ascese e dignidade, longe da vileza da simulação e sem o desvio pelotiqueiro da dificuldade intrínseca dos problemas para a obscuridade rebuscada das palavras, tempos virão a Portugal em que os filosofemas que dormitam no âmago do nosso cerne espiritual despertarão com o sorriso claro da inteligência e com as mãos abertas para todas as realidades, que são as mãos do acolhimento franco e da dádiva magnânima.

É para estas alturas que Guilherme Dilthey convida, — e precisamente pelo caminho mais transitável pela nossa inveterada tendência historizante. Foi sempre em torno da História, tanto da que os outros fizeram como da que se pretende fazer, sobretudo mediante a decisão política, que se travaram as nossas mais rijas batalhas de ideias.

Para quem assim gosta de se mirar no que foi, no que é e no que quer ser, poucas atitudes filosóficas são tão consentâneas e mais incitantes do que a que se firma na multiplicidade das formas concretas da vida espiritual e na conceção do homem como ser histórico.

Coimbra, Junho de 1947.


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