Discursos académicos de circunstância

Sr. Presidente:

e Ilustres Confrades:

Entra o Sr. Henrique de Vilhena na nossa Corporação provido de muitos e aquilatados méritos, na plena maturidade do seu talento. A natureza foi-lhe pródiga; rico de dons, a sua atividade acumula os rasgos salientes do cientista, do mestre e orientador, do esteta e do crítico, e ainda os do político, se por político entendermos o homem que cumpre os deveres repúblicos obedecendo a um ideal de razão e a desideratos morais.

Reconheço e sinto como próprio o seu ideal, mas porque os elogios académicos não são profissões de fé e a reflexão política só deve penetrar neste recinto despojada de atualidade e quando o julgamento imparcial pode dominar os impulsos da paixão, calarei o que sinto para exprimir apenas em voz alta o que penso da sua obra científica.

O Sr. Henrique de Vilhena nasceu em Lisboa em 13 de Março de 1879, isto é, em pleno apogeu da Monarquia Constitucional e no derradeiro quartel do século que na nossa história partilha com o décimo sexto o fulgor da inteligência e o arrebatamento daquelas paixões, que congregam a poeira dispersa e baça dos indivíduos na constelação fascinante das grandes empresas coletivas.

A liberdade, que fora a empresa do século e tanto sangue custara, não era então um mito; descendo do páramo do ideal para polir a tosca realidade, a uns domesticava a grosseria dos instintos, a outros exaltava as tendências nobres, e a todos proporcionava a alegria de criar e de viver. Oh! Como foi belo o outono do século passado!

Sobre o encanto da quadra do nascimento, o Sr. Vilhena possui a dita de haver visto a luz de progenitores ilustres, cujo relevo e significação social moverão a pena do historiador, quando em Portugal surgir o cultivo das monografias familiares, coisa diversa do reconto genealógico. Pela Mãe, a Senhora D.S Maria da Piedade Pereira Jardim de Vilhena, entronca o nosso Confrade numa família representativa do século XIX, a qual surgiu à notoriedade com as campanhas liberais, se distinguiu ulteriormente na Universidade, na administração, no comércio, e se tornou inseparável da história da minha terra natal pelo muito que concorreu para o seu progresso; do pai, o Dr. Júlio Marques de Vilhena, herdou um nome denso de responsabilidades, notável nas bancadas escolares, veemente no estrado dos comícios, diserto na tribuna parlamentar, erudito na cadeira académica e prudente na poltrona do Conselho de Estado. Em todos estes lugares, o Dr. Júlio de Vilhena assinalou inconfundivelmente a sua individualidade. Os seus trinta anos de vida pública pertencem de direito à história pátria; mas se os historiadores podem dissentir sobre o conceito do estadista e do condutor de uma corrente de opinião cívica, a nossa Companhia será sempre unânime em louvar no confrade a cintilação do talento, a sabedoria dos juízos, nutrida do suco de uma longa experiência humana, e a prudência com que, sem a adorar, acatou a filosofia política, conduzindo as verdades que alguns de nós investigam abstratamente à substância das leis.

O signo da época, a estirpe e ambiente familiar propiciaram, ao Sr. Vilhena, em feliz acordo, todas as condições favoráveis ao desenvolvimento das suas ingénitas virtualidades. Sob o desvelo e vigilância dos pais cresceu e se educou até ao dia em que, concluídos os estudos secundários, devia dilatar a incipiente formação intelectual numa escola superior.

Coimbra e a sua Universidade como que faziam parte do património moral da sua família: em Coimbra nascera sua mãe, na Faculdade de Filosofia professara seu avô, o visconde de Montesão, e na de Direito, o Dr. António Jardim instaurara o ensino das disciplinas financeiras e seu pai granjeara a láurea doutoral e o renome com a famosa tese acerca das Raças históricas da Península Ibérica e sua influência no direito português.

Foi, pois, para Coimbra que se dirigiu em 1895, aos dezasseis anos, matriculando-se na Faculdade de Matemática com o propósito de seguir o curso de engenharia civil ou militar. A sua juventude, ambiciosa como a de todos os homens que logram marcar a maturidade com o selo da individualidade, ardia no desejo de ajuntar à formação científica a educação artística. Pela tradição escolástica, pela acessibilidade dos meios de trabalho, pela estrutura da vida escolar, Coimbra favorece o cultivo da inteligência e a arte de exprimir o pensamento, mas só Lisboa proporciona a educação integral do bom gosto. O estudante de Coimbra aprende a ser diserto e se o comove a natureza com o vago sentimento da intropatia lírica pode às vezes ser poeta; mas o estudante de Lisboa, não vivendo talvez tão intensamente os sentimentos íntimos e apreendendo mais cedo a realidade da vida, logra sobre o seu camarada coimbrão a vantagem de poder educar integralmente os sentimentos artísticos e a capacidade crítica.

Fosse por esta razão, fosse pela ascendência no seu espírito de novos interesses intelectuais, ao cabo de um ano o jovem estudante trocava o curso de engenharia pelo de medicina e regressava a Lisboa, em cuja Escola Médica, de notável tradição, concluiu a formatura em 1904. A vocação científica do Sr. Vilhena encontrara o meio propício; as hesitações cederam o passo à tenacidade perseverante, e porque a fortuna sorri sempre aos que inteligentemente porfiam, cedo encontrou quem lhe descobrisse a vocação talentosa e no seu espírito promissor começasse a modelar a figura perfeita do futuro mestre. Entre o mestre e o escritor científico há rasgos comuns, mas existe uma diferença profunda: enquanto o escritor povoa artificialmente de um público imaginário o papel em que escreve, o mestre jamais pode abstrair dos indivíduos concretos que o escutam e mediante a preleção, na citação da palavra, na seleção criteriosa dos factos, na construção lógica das ideias, hão-de colher com o viático das primeiras jornadas o convencimento de que a ciência, sendo acessível, não é fácil. Se o livro é a obra do escritor, o discípulo é a criação suprema do mestre. Se me admitis o paralelo, atrevo-me a dizer que considero o discípulo produção mais admirável que o livro. Quase tudo o que somos devemo-lo ao livro; sem o Evangelho a humanidade viveria ainda privada da revelação do amor humano e sem os Elementos de Euclides, que são o Evangelho da razão, não teria ascendido à mentalidade lógica e ignoraria as maravilhas da demonstração. Esquecer o que devemos ao livro seria uma afronta ao génio humano, e nesta Casa um atentado imperdoável, mas o livro, embora exponha ou sugira, colija ou demonstre para a duração indefinida, é sempre o arquivo de um pensamento que foi. O discípulo, pelo contrário, é o pensamento vivo e que devém, o facho que se não apaga; por isso todo o mestre, se muitas vezes ambiciona a glória estática que o livro encerra, deseja sempre sobreviver-se no discípulo, e tanto mais se sobrevive quanto mais o discípulo dilata, transforma ou mesmo substitui o pensamento do Mestre, em obediência à indeclinável lei do progresso e aos foros irremissíveis da verdade.

O Sr. Vilhena teve a fortuna de encontrar no início da sua carreira um verdadeiro mestre, que no escolar modelou o estudante, e do estudante soube fazer o discípulo criador. Esse homem insigne, cuja obra enche a história da anatomia em Portugal durante o século passado, chamou-se José António Serrano, — grande entre os maiores do nosso século XIX, e que eu visiono presente aqui, neste momento, ao nosso lado, para se congratular connosco e dizer-nos que o seu ideal científico pervive na mente daquele que aos 18 anos ele distinguiu e animou, e haveria de ser na maturidade seu digno e grato sucessor.


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