Discursos académicos de circunstância

Com a conclusão do curso, em 1904, encontrou-se o Sr. Vilhena perante o problema da existência, ou antes, o da subsistência. Resolveu-o logo com o exercício da clínica, como diretor médico da filial portuguesa de uma companhia de seguros, mas a vocação e o ideal atraíam-no para outra espécie de atividade. É fácil, às vezes, substituir o método da atividade, mas é sempre difícil despojar-se alguém dos hábitos intelectuais enraizados. Durante a escolaridade, o Sr. Vilhena formara a razão na disciplina científica e cultivara o espírito educando o sentimento estético no convívio seleto dos grandes escritores, e desta formação e deste convívio brotara pujantemente o desejo de conciliar a inclinação pessoal e os hábitos adquiridos com as exigências da vida quotidiana.

Na sociedade contemporânea, para quem não é herdeiro rico, a conciliação só é possível pelo exercício do magistério. Para a vida docente se volveram, pois, os anelos do Sr. Vilhena que ao cabo de pouco tempo viu em parte realizados com o convite, em 1905, para a regência interina da cadeira de Anatomia artística na Escola de Belas Artes de Lisboa, e para o cargo de Prossector de Anatomia, em 1906, na então Escola Médica de Lisboa e hoje Faculdade de Medicina. O Sr. Vilhena encontrara a verdadeira rota da sua vida, que o ano de 1911 fixou definitivamente; na Escola de Belas Artes, por proposta do conselho escolar a regência interina é transformada em definitiva e na Faculdade de Medicina o Prossector, que fora candidato único ao concurso de provas públicas, ascende, em Fevereiro de 1911, com dispensa de provas e por honrosa proposta da congregação, ao cargo de professor substituto de Anatomia, e quatro meses depois ao de professor catedrático desta cadeira. A partir de então o Sr. Vilhena consagrou-se definitiva e quase exclusivamente à vida científica; e digo quase exclusivamente porque a estimação dos concidadãos o obrigou, por vezes, a repartir a atividade pelo escritório, pela cátedra e pelo foro.

Por isso, o Sr. Vilhena acrescenta à vida do mestre e do escritor a do homem público, a que em 1915 os Munícipes de Lisboa honraram com a presidência do seu Senado camarário, em 1919 o eleitorado da capital levou ao Senado da República e em Junho de 1925 um ministro da instrução confiou a Reitoria da Universidade de Coimbra, da qual se demitiu por espontânea deliberação, precisamente um ano depois.

No Senado da República pugnou o Sr. Vilhena por franquias que considera essenciais à dignidade da cidadania e à vida universitária, e do seu trânsito pela Reitoria da Universidade coimbrã posso ser testemunha do zelo e decoro com que a desempenhou; no entanto, se me consentis, não me deterei sobre os seus rasgos e afirmações cívicas.

Para julgar atos políticos é necessário saber esquecer, e eu vejo-os tão próximos que os não posso apreciar com a perspetiva da distância, ou se quiserdes, da indiferença. Demais, neste recinto e neste momento, a obra não deve, porventura, suscitar-nos mais interesse que o autor, por muito que o admiremos e estimemos na plenitude do seu ser?

O Sr. Vilhena é um escritor fecundo, mas não foi precoce; publicou o seu primeiro livro em 1909, aos trinta anos. As longas e variadas leituras cedo lhe aguçaram o juízo crítico, e o exercício temporão do magistério compenetrou-o das tremendas responsabilidades do escritor. Antes de empunhar a pena quis ter que dizer e saber claramente o que iria dizer. Ambicionou trabalhar uma matéria informe e inexplorada que a sua mente selasse com o cunho da originalidade e para cuja gestação criadora concorressem simultaneamente o saber minucioso do anatómico, a finura psicológica do crítico e a sensibilidade apurada do esteta.

Essa matéria foi arrancá-la à expressão emocional, uma das grandes conquistas do homem sobre esta pobre máquina que é o nosso corpo e que a ciência resgatou das ilusões teleológicas, transplantando-a para o domínio da história das vicissitudes humanas. São vários os meios com que a natureza nos dotou para exprimirmos a vida interior. Uns, como a palavra e a mímica, tantas vezes denunciadora do que a palavra esconde ou dissimula, integram-se no dinamismo vital e patenteiam com mais ou menos clareza os estados de alma; outros, como o gesto e a atitude pertencem ao mundo do silêncio, que o génio do artista pode quebrar mediante a plástica da estátua, as combinações da paleta, a viveza da descrição literária, surpreendendo a linguagem poderosa da expressividade dos corpos. Foi neste terreno vastíssimo, começado a explorar por Darwin, que o Sr. Vilhena talhou o canteiro das suas lucubrações, e porque tinha em vista fazer obra perfeita de anatomia artística cingiu-se particularmente ao estudo da mímica dos fenómenos afetivos. Pensou, e bem, que a vida afetiva, pela índole e complexidade, não tolera facilmente as sínteses generalizadoras e se furta ao esquematismo da razão! O esforço imenso que tem sido necessário despender para subtrair a vida afetiva ao ídolo racionalista!

Debalde Pascal opôs a lógica do coração à lógica da razão, e todas as almas fraternalmente caritativas sentiram a presença inefável de uma «ordo amoris», tão real e necessária como a ordem que as leis da natureza exprimem; no entanto a filosofia das escolas persistia em traduzir na linguagem da razão o que por natureza desobedece às categorias lógicas. O Sr. Vilhena não cometeu este erro de visão, que a autoridade de Descartes e de Espinosa parecia abonar; e porque reconheceu a feição original e irredutível das emoções pensou que deviam ser estudadas isoladamente, assim na índole peculiar como na respetiva expressividade. Convencido dos resultados seguros deste método, o Sr. Vilhena aplicou-se ao estudo da cólera, emoção temível nos poderosos, risível nos fracos, e que representa na frase feliz de Ribot «a forma ofensiva do instinto de conservação», ao contrário do medo, que é a forma defensiva do mesmo instinto. Fortemente pensado e abundantemente provido de vastíssima informação, não surpreende que o primeiro livro do Sr. Vilhena, que intitulou A expressão da cólera na literatura, e publicou, como disse, em 1909, nascesse com a sigla do definitivo e o dinamismo das criações sintéticas, pois uma parte considerável das suas obras ulteriores são o desenvolvimento em profundidade ou em extensão de ideias nele contidas. A carência de originais e de reproduções dos museus portugueses compeliu o Sr. Vilhena a procurar no tesouro literário da humanidade, que não na estatuária e na pintura, a informação universalista de que carecia. Nenhuma grande obra literária escapou à sua leitura e em todas vincou com dexteridade os traços característicos da expressão colérica.

A prodigiosa erudição de que se socorreu! É vulgar nos eruditos uma espécie de incompatibilidade entre a identificação minuciosa dos factos e a construção de sínteses, quando não com o próprio relato cursivo dos acontecimentos. Dir-se-ia que a exação do pormenor e o hábito de trabalhar à lupa lhes estrangula o sentimento construtivo das ideias gerais. Detendo-se no pormenor, investigando-o diligentemente através de todas as literaturas, o Sr. Vilhena, para glória da sua inteligência e honra da ciência pátria, nem se perdeu nos labirintos da minúcia, nem quebrou o fio condutor e iluminante das ideias gerais. Por isso, o seu livro é, a um tempo, obra de anatómico e descrição de filósofo; se o artista e o anatómico nele podem aprender, como livro sem par em qualquer linguagem, as expressões físicas da cólera com sede nas várias regiões da cabeça e da face, nas modificações da circulação sanguínea, nos fenómenos de inervação motriz e nas alterações das funções respiratória e vocal, o psicólogo e o filósofo encontram ali a messe esplêndida de sagazes observações morfológicas e fenomenológicas das emoções, designadamente acerca das deflagrações da cólera sobre o próprio encolerizado e sobre os demais seres e coisas, do simbolismo das Erínies e da prefiguração da cólera divina. Num país, como o nosso, em que as mais variadas solicitações distraem o intelectual, conduzindo-o não raro à dispersão, a qual embora revele a flexibilidade do espírito lhe arrebata quase sempre a força, o Sr. Vilhena é exemplo admirável de tenacidade. Tem sido fiel às ideias expressas no seu primeiro livro; mas porque a fidelidade não é sinónimo de obstinação ou de rotina, rasgou a inteligência às sugestões variáveis da própria critica e da alheia informação, recolhendo-as ao abrigo do mesmo critério e da perseverança dos mesmos objetivos. Por isso, podemos falar de progresso no espírito e na obra do Sr. Vilhena, e o progresso manifesta-se simultaneamente em profundidade e em extensão.


?>
Vamos corrigir esse problema