Discursos académicos de circunstância

Prova-o a simples enumeração dos seus estudos ulteriores, designadamente os ensaios sobre A expressão da cólera pela palavra através de bastantes obras primas e autores literários clássicos e Sobre certas expressões de cólera nem físicas nem verbais propriamente e seu comento literário. Nestes escritos dilata e aprofunda as suas primeiras reflexões; mas podia o Sr. Vilhena apreender nitidamente a fenomenologia e a expressividade da Cólera sem as integrar no conjunto da vida emocional, de inextricável complexidade? Talvez por não ter sido trabalhada por filósofos e metafísicos é a língua portuguesa relativamente pobre no vocabulário abstrato. Vocábulos de significação metafísica, como a distinção ontológica do ser e estar, contam-se quase com os dedos; em compensação raras se lhe avantajam na exuberância de palavras referentes à vida afetiva. O facto é de verificação antiga; lembremo-nos apenas de D.S Duarte, que com rara segurança devassou pela primeira vez no Leal Conselheiro os mistérios verbais da nossa linguagem emocional, comparando e definindo a sanha, a ira, o ódio, a malquerença, o enfadamento, a tristeza, o nojo, o pesar, o desprazer, o aborrecimento e a saudade. Este facto, que é de singular importância para a psicologia do nosso povo, propõe desde logo ao investigador da vida emocional um campo vastíssimo de exploração. Bastaria, pois, a simples reflexão sobre o nosso vocabulário para que o Sr. Vilhena se sentisse compelido a dilatar o âmbito das suas observações, passando da análise da cólera às demais emoções e paixões. Titulado como nenhum outro português para realizar esta grande obra, o Sr. Vilhena acometeu-a com notável diligência; e assim deu-nos sucessivamente o Conspecto sumário da expressão corporal das emoções nas literaturas grega e latina, o ensaio Sobre a expressão corporal das emoções comparativamente em alguns grandes poetas ou escritores meridionais e nórdicos, A expressão corporal das emoções nas obras iniciais de um desenvolvimento literário, mas de carácter primitivo e criações literárias de sentido popular, A expressão corporal das emoções no Cancioneiro Português da Vaticana, profunda sondagem sobre a psicologia do português da meia idade, A expressão corporal das emoções em dois grandes poetas latinos do período literário da decadência, a comunicação académica Sobre a expressão corporal das emoções nas obras dos períodos literários de desenvolvimento, e por fim, monográfica ou genericamente, alguns estudos dentre os quais apontarei apenas os ensaios sobre O Desterrado, de Soares dos Reis, e sobre A emoção e o sentido psicológico e moral dos Nibelungos. Partindo inicialmente da expressão física da cólera, o Sr. Vilhena leva hoje estudadas, sob o ponto de vista literário, quase todas as formas de expressão emocional, e digo quase todas porque as reações espasmódicas e as reações secretórias, como o suor e as lágrimas, só de relance surgem nos seus últimos trabalhos. Estou seguro que não tardará o dia em que possamos agradecer ao Sr. Vilhena o estudo destas expressões, pois ninguém como ele é capaz de devassar com mais saber e ternura a morfologia e fenomenologia do pranto, tema de insuspeitado alcance para o conhecimento da psicologia do nosso povo.

Os escritos que até agora apontei em rapidíssimo conspecto reportam-se, inicialmente, à atividade do professor de Anatomia artística. Eles pressupunham, como é óbvio, uma base anatómica e fisiológica e por isso não surpreende que o professor da Faculdade de Medicina houvesse escolhido como tema do seu primeiro trabalho anatómico o estudo de Os músculos subcutâneos do crânio estudados no tipo português humilde, publicado em 1911. A unidade de pensamento, que tem orientado o labor científico do Sr. Vilhena, uma vez mais se patenteava, pois se na expressão física da cólera havia estudado particularmente a mímica facial, cumpria agora ao anatomista dissecar a miologia da face e do crânio. Cabe às ideias filosóficas uma dupla função; por um lado proporcionam pontos de vista gerais acerca da nossa posição perante o mundo, a vida e a atividade, por outro exprimem os sintomas do que late obscuramente numa época e penetra na consciência clara dos grandes espíritos. O seu primeiro livro anatómico é a expressão científica da problemática moral que impusera ao seu espírito a fenomenologia da cólera, mas é ao mesmo tempo a afirmação daquele inolvidável entusiasmo que por 1911 levou tantos investigadores portugueses a debruçarem-se sobre o nosso povo, para melhor o servirem mediante o conhecimento científico da sua existência. Não se volatilizou, felizmente, esse entusiasmo, graças ao qual a ciência foi adquirindo dia a dia mais raízes indígenas e mais eficiência nacional. Nessa obra imensa, que é talvez o mandato da nossa geração, tem o Sr. Vilhena a sua quota inconfundível como tratadista científico e como mestre orientador. Como tratadista científico orientou a sua obra, como ele próprio confessa, não só num «sentido antropológico, de feição étnica, mas ainda de modo simultâneo, no da investigação minuciosa dos vários sistemas orgânicos, nesse aspeto e no das influências patológicas e da profissão, idade e sexo»; como mestre e orientador, criou o Instituto de Anatomia de Lisboa, formou numerosos discípulos sob a mesma ideia condutora, instaurou uma escola da qual é órgão o Arquivo de Anatomia e Antropologia, cujas páginas deveriam ser, em seu anelo, «o repositório inteligente de estudos de morfologia macroscópica humana e comparada, não só no ponto de vista da observação atual como no da investigação histórica e arqueológica. Este horizonte amplo, acrescentava, abrange para nós também um intuito especial — o estudo morfológico do tipo português. Muito pensamos na necessidade da criação de uma verdadeira anatomia portuguesa; e que o seja não só na língua em que se exponha, como, em especial no objeto de estudo, consciente, franca e declaradamente português». Nobres intenções que o Sr. Vilhena confessava em 1912 e a que se tem mantido fiel, com admirável perseverança e não menos admirável influência, no espírito dos seus discípulos; mas falece-me a competência para a julgar, embora suspeite que o homem, como algumas das suas produções, designadamente a palavra, seja suscetível de se modificar horizontalmente, ao deslocar-se de lugar para lugar, e verticalmente, passando de uma camada social para outra. Tais ideias e respetivo método, acusam, no entanto, uma orientação pessoal e original, de sentido amplamente antropológico, que o Sr. Vilhena tem procurado comprovar na série já vasta das suas Observações anatómicas iniciadas em 1913, e ambicionou fundamentar lógica e cientificamente em vários artigos do seu Arquivo de Anatomia e Antropologia.

Como a todas as ideias anunciadoras de novos ideais ou de novos métodos científicos não lhe faltaram, naturalmente, as críticas mais ou menos dubitativas; mas para glória do Sr. Vilhena houve também, para além--fronteiras, quem o aplaudisse. Assim, Dubbreil-Chambardel não hesitou em louvar «la méthode très neuve et singulierement comprehensive avec laquelle vous avez abordé l'étude des variations morphologiques, méthode qui devra donner, lorsqu'il elle sera propagée un peu partout, des résultats très importants sur l'anatomie des races».


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