Um manuscrito de Manuel de Faria Severim?

O ms. que adiante se publica, apesar de inserto já, com algumas variantes, no raro Archivo Bibliographico (Coimbra 1877, pp. 341-4) e conquanto seja de escasso valor histórico e literário, acusando, por demais, uma ingénua conceção providencialista da história, merece um momento de atenção pelo problema bibliográfico que suscita: a sua autoria. Será obra de Manuel Severim de Faria (1583-1655), o conhecido autor dos Discursos vários políticos (1624), ou de seu sobrinho e herdeiro na fortuna e no chantrado de Évora, Manuel de Faria Severim (n. 1609)? Debalde se encontra em Barbosa Machado qualquer referência; mas Brito Aranha, no Dicionário Bibliográfico (tomo XVI, p. 184), assevera, sem apresentar razões, que é «evidentemente» do sobrinho, enquanto que o Sr. Dr. Leite de Vasconcelos, num documentado estudo, cheio de notícias inéditas, sobre Severim de Faria (Notas biográfico-literárias) , atribui-o ao tio. Na cópia adiante transcrita, expressamente se atribui a Manuel de Faria Severim; e de facto assim parece ser, pois o título deste ms. tal como existe no coD.s 1689 da Biblioteca Nacional, que o Sr. Dr. Leite de Vasconcelos transcreve (ibiD.s, p. 242), não permite uma solução categórica.

No coD.s lisbonense lê-se: Observações sobre os males que Deos permitio para bem de Portugal, advertidos pelo chantre de Évora, Manoel Severim, a 20 de setembro de 1643; e nos conimbricenses — coD.s 38, in fine (com variantes) e coD.s 491, a fls. 13: Observaçoens dos Males que Deus permittio para bem de Portugal Escriptos, e expostos Pelo Chantre d'Evora Manoel de Faria Severim, em 20 de Setr.° de 1643. Um e outro cópias, — os de Coimbra, de mão desconhecida, o de Lisboa, do insigne António Ribeiro dos Santos, — manifestamente que a autoria deste escrito se não pode decidir, duma forma absoluta, sem que outros elementos surjam a desfazer esta confusão entre os dois parentes, acusada já noutros aspetos. Porém, não devemos deixar de frisar que, enquanto o coD.s de Lisboa dá margem a dúvidas, pela omissão do apelido Faria, os de Coimbra são absolutamente claros na atribuição, — o que constitui um elemento de certa importância a favor de Manuel de Faria Severim.        

OBSERVAÇÕENS DOS MALES QUE DEUS PERMITTIO PARA BEM DE PORTUGAL

Escriptos, e expostos pelo Chantre d'Evora

Manoel de Faria Severim

em 20 de Setr.° de 1643

Permittio Deus, que se perdesse El Rey Dom Sebastiaõ, e ficasse toda a Fidalguia Portugueza captiva de Mouros; porque estando os Portuguezes muito soberbos com as victorias que houveraõ por todas as partes do Mundo; nam as reconheciam já a Deos; mas cuidavam que eraõ alcançadas só por seo valor. Castigou Deos esta soberba com aquelle Mizeravel Captiveiro. E depois com a entrada dos Castelhanos; que conhecendo nós por experiencia, que as victorias que alcançavamos, naõ era por nossa fortaleza, se nam pela mizericordia de Deus, nos humilhasse-mos, e fossemos exemplo ao Mundo deste conhecimento; e ficasse-mos capazes de receber outra vez o Reyno, e Liberdade de sua Divina Mâm.               

Permittio Deus, que o Conde de Vimioso Dom Francisco, perdesse a vida, e a caza, defendendo a Liberdade de Portugal, e que o Conde de Basto, e o Marquez de Castello Rodrigo , ganhassem estes Titullos entregando o mesmo Reyno. E ordenou depois que as cazas de Basto, e Castello Rodrigo, se perdessem; e a do Vimioso se restaurasse pela mesma valia do Conde de Basto, que cazou sua filha com Dom Luís; e pela fazenda da de Castello Rodrigo, que cazou outra filha com o Conde Dom Affonso: para mostrar a todos com tam raros exemplos, que os que fazem o que nam devem, cuidando de ganhar para seus filhos, os deixam perdidos; e os que fazem o que devem, ainda que de prezente padeçam, nam deixam seus filhos desamparados; antes accrescentados na opiniaõ dos Homens, e na protecçam Divina.              

Permittio a Guerra dos 0llandezes no Brazil, para haver Capitaens, e Soldados prácticos neste Reyno, que soubessem pelejar contra a Milicia dos Castelhanos.

Permittio, que obrigassem aos Senhores Portuguezes a dar Soldados para Catalunha; para que tornassem a Portugal prácticos, depois da Acclamaçam; e isto em tanto numero, que por conta, tem entrado em Portugal, de Catalunha, e Flandres, quaze seis mil homens de Guerra.

Permittio o escrever das Fazendas; para que com essa occaziam se levantassem os de Evora, e entendessem os Castelhanos, que só em Evora havia dez mil homens armados, sem a Nobreza do Reino; e por isso mandáram, que Sua Milicia naõ paçasse de Badajóz, e tiveram por felicidade a Reducçam.

Permittio, que chamasse El Rey de Castella todos os Grandes, e Fidalgos a Madrid; para com isso ficarem só em Portugal os que haviam de Acclamar a Liberdade; estando auzentes os que lhe haviam de rezistir; principalmente todos os Senhores, que por entregarem Portugal, alcançáram titullos de El Rey de Castella.

Permittio a destruiçam da Armada de Oquendo, para que naõ houvesse forsas Maritimas em Castella que offendessen a Portugal.

Permittio os dezaforos, que os Castelhanos fizeraõ em Catalunha; para se levantarem os Catellaens, e se entregarem aos Francezes; para que El Rey de Castella ficasse opprimido com outra Guerra mais perigosa, e que lhe nam deo lugar para acudir á de Portugal; estando principalmente com a opiniam das grandes forças deste Reyno; porque, se de Evora som. lhe disseram que tinha dez mil homens contra Elle, quando nam tinha comsigo a Nobreza: quanto mayor poder seria agora o do Reyno todo juncto?

Permittio Deus, que El Rey de Castella, com a inveja que tinha a Sua Mag.a' sendo Duque, o obrigasse a ir a Almada com o Titullo de governar as Armas, parecendolhe, que deste modo o desauthorizava; para que com esta occaziam, ovisse, e tractasse toda a Nobreza do Reino, e se penhorasse com novos dezejos de o reconhecer por seo Princepe.

Permittio, que El Rey de Castella obrigasse a todo os Nobres que fossem militar a Catalunha, ou perdessem as honras, e fazendas, que possuhiam. E tendo-se no Reyno experiencia, que os que partiam para este desterro, nam tornavam: entráram em dezesperaçam; e com ella se rezolvêram a Acclamarem o verdadeiro Rey, e deixarem o estranho.

Permittio Deus, que este Reyno chegasse ao mais mizeravel estado, que nunca teve; sem Armas, sem Soldados, sem Armadas, e sem Forteficaçoens: para que dando-lhe, nesta mizeria, hum Rey; vissemos, que esta obra naõ era alcançada por nosso poder, e forças; senam pela Mizericordia Divina, pois que estavamos sem Gente de guerra nas quatorze Praças fortes, que os Castelhanos tinham neste Reyno; e os Navios armados, que estavam em Lisbôa. E pelo contrario; que as Emprêzas, que accometemos com mayor poder, como foi a de Andaluzia com trez Armadas; naõ tivessem effeito: e a das Ilhas; q. intentando libertalla com duas Armadas, nenhuma dellas chegasse a tempo; e os Naturaes, com suas pequênas forças, rendessem ós Castelhanos; com que ficou conhecida a Victoria por Divina; e os da Ilha, recuperando a reputaçam, que no tempo de outra Successam perdêram.

Permittio, que estando os Castelhanos os seis primeiros mezes quietos, sem Portugal romper contra elles; elles rompessem a Guerra com Portugal com muito pouco poder; com que os Portuguezes ficáram melhorando-se com alcançarem delles muitas Victorias; e fazendo-se com ellas muito prácticos: O que sem esta occaziam naõ podéra ser.

Permittio, que antigamente désse EIRey Dom Joao 1.°, quaze a terça parte do Reyno ao Condestavel Dom Nuno Alvares Pereira; para com este grande Patrimonio, se poder conservar a decencia Real, da Caza de Bragança com Estado grandeozo: e agora succedendo na Corôa, tornar-se taõ grande parte do Reyno a unirse a ella.

Permittio, que muitos Senhores, e Titullos, cahissem no Crime de deslealdade, para com suas rendas, e fazendas, se ajudar a sustentar a Guerra contra Castella.


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