Pombal, ou a contradição na política

Lisboa comemora hoje o aniversário do nascimento do Marquês de Pombal. Cumpre o dever de urbe reconhecida à energia do reconstrutor, que dos escombros do calamitoso megassismo ergueu a formosa capital do seu tempo. Pelo terramoto de 1755 ruiu uma cidade, e ruiu também um mundo de ideias fáceis e ingenuamente otimistas, de que o desacordo entre Voltaire e Rousseau e as reflexões ainda tímidas, de Kant, são os momentos supremos. O País conheceu então o homem necessário, e a humanidade pensante apercebeu doloridamente de que não vivemos no melhor dos mundos possíveis e que a natureza é o teatro indiferente do bem e do mal. Os atos do ministro converteram-no em estadista, e da cidade arrasada e reconstruída, os seus olhos volveram-se para o País, no conjunto dos seus interesses e destinos.

À reconstrução da cidade ia suceder-se a reorganização da sociedade, e sobre a pessoa de Pombal a política pombalina. É uma vida nova que começa, aliás impulsionada por um velho. Tentemos compreendê-la.

Quando Descartes no isolamento do quartel de inverno, junto do Danúbio, imaginava que os povos outrora selvagens e paulatinamente civilizados não podiam estar tão bem organizados e policiados como os que observaram, desde a sua reunião, as constituições de um prudente legislador, anunciava o estilo mental do seu século e vaticinava o ideal político do imediato. Pombal quis ser o realizador português do ideal cartesiano. É possível que desconhecesse Descartes e até o detestasse, e pode mesmo pensar-se que o estadista, mais enfático que lógico, não possuiu um ideário político definido. As circunstâncias ditavam-lhe o proceder; mas quando o cotejamos com Catarina da Rússia, para quem Diderot redigiu um plano de ensino afim do nosso enciclopedista Ribeiro Sanches, Frederico II, da Prússia, Campomanes, Aranda, Tanucci, etc., depara-se-nos um vinco familiar que a todos acalenta. Esse vinco é a convicção da barbaridade do passado, é a confiança na razão edificadora e a certeza de que só ela instaura o reinado da paz e da prosperidade definitiva, final.

Por isso, a configuração geométrica da Lisboa reedificada após o terramoto é a imagem visual da política pombalina: esquadro e compasso, como quem diz retas e proporções, jugulando e aniquilando a diversidade infinita das coisas e dos indivíduos.

Para nós, hoje, que tudo concebemos evolutivamente e nos deixamos corromper pelo ideal mecânico da meta a atingir, tornando possível o gozo do presente, que damos em holocausto ao porvir remoto, a meditação da política pombalina gera-nos a sensação da viagem ao país exótico.

A nossa consciência de liberais e democratas concebe a ação evolutiva e reformista, colocando o acento no que será; Pombal pelo contrário oferece-nos uma política sobre o ser, o estável, o definitivo. Arquitetamos o Estado como instrumento repressor de abusos, essencialmente defensivo: Pombal exibe-nos, sem hesitações nem comedimento, um Estado imperativo e de tática ofensiva, isto é, impondo usos. Queremos e amamos o pensar individual autónomo e livre, e Pombal, desalojando a individualidade onde quer que se abrigue, quer que o ritmo da vida interior se harmonize com o estilo da vida oficial. Ele pensa por todos, ele atua por todos, e partindo do princípio de que a massa dos indivíduos é uma poeira desagregada e caótica empreende a grande obra de estatuário político, organizando os indivíduos em corpo de nação.

A nação pombalina tem, assim, o aspeto de uma cadeia, com um único carcereiro. Viver politicamente, para Pombal, é apoiar-se numa organização forte e temida, e na razão geométrica que tudo coloca e dispõe no respetivo lugar. Dele dizia o embaixador espanhol em Lisboa, que sofria de «uma espécie de quixotismo estadístico» e com efeito jamais houve em terra lusitana tão cega superstição no «bom governo» e tão atrevido Quixote do poder estatal. «O supremo poder reside na pessoa de um só homem, o qual ainda que se deve conduzir pela razão, não reconhece contudo outro superior que não seja o mesmo Deus», escrevia ou mandava escrever na «Dedução cronológica e analítica» e para consolo dos súbditos lembrava-lhes apenas as palavras do profeta Samuel, advertindo-os de que «não havia contra os reis mais recurso que o sofrimento», porque «Deus não ouviria nunca os incompetentes clamores com que o povo acusasse o seu próprio rei».

Sobre esta base despótica se edifica toda a construção pombalina; mas mediante a unidade do poder e da ação, que mundo de coisas contraditórias!

Pombal é a contradição desconcertante, e por o ser é que o pombalino, em grande parte uma criação do patriotismo dos românticos, resiste ao juízo equânime. Déspota, lançou a semente da ideia da igualdade perante a lei; autoritário, apelou pela primeira vez em Portugal para a opinião pública, que nasceu precisamente sob o seu consulado; católico-romano, humilhou a Santa Sé, e quis a autonomia religiosa da nação, com a Igreja lusitana; respeitador das ordens religiosas, expulsou os jesuítas e perseguiu-os tão implacavelmente que tudo quanto posteriormente se disse contra a Companhia de Jesus foi dito apenas com palavras diversas; hostil a judeus, acabou com a infamante distinção de cristãos-novos e cristãos-velhos; desprezador dos direitos individuais, foi o emancipador dos escravos índios; estrangeirado na mente e nos modelos, realiza uma obra, discutível aliás, de independência económica da nação, amparando o comércio, a agricultura, a navegação e criando indústrias novas; sedento de honrarias e com preconceitos de nobreza, honrou a atividade comercial, fundando a «Aula de Comércio», a primeira que houve na Europa; confiante nas luzes da razão natural, transformou a Inquisição em tribunal político; verdadeiro criador da instrução pública, e reformador da Universidade, que arrancou «ex-stercore», policiou o pensamento com a Mesa Censória, pela qual se proscreveram obras filosóficas e literárias, como a «Nova Heloisa», de Rousseau e os «Contos» de Lafontaine; literato, que não cientista, se se lhe podem atribuir estes predicados, deu o primado da cultura às ciências, que não às letras, e ofensivamente orgulhoso, procurou o saber de homens como Fr. Manuel do Cenáculo e António Pereira de Figueiredo.

Não é acaso em tantas e tão diversas contradições que se edifica a glória de Pombal? A afirmativa é triste para o pobre espírito humano quando faz da ausência de contradição a marca da sua dignidade intelectual; mas quando as auscultamos ouvimos claramente a gargalhada expansiva da vida, que se não deixou aprisionar pela mão e pela mente de férreo governante. Pensou e quis o definitivo, e afinal pela reforma de todas as instituições, da vida pública e até da vida privada, da economia e da moral, gerou o sentimento do transitório; julgou ter estabelecido o poder público forte, e fê-lo oscilar do arbitrário para o frágil; hierarquizou a sociedade, mas o burguês mais honrado e ativo, riu-se do aristocrata; desconheceu o indivíduo e da sua obra brotou o advento da individualidade, e sob a armadura rígida da sua moral imposta fez com que o Cristianismo começasse a surgir como um sistema de filosofia. A uma obra que nascera selada com a contradição não surpreende que a contradição lhe acompanhe os destinos; ora se exalta até à admiração incondicional, ora se deprime até à indignação repulsiva. Entre os dois polos se tem movido o pombalismo, mas a contradição só cessará pela vitória, na consciência moral dos portugueses, do reconhecimento da pessoa de outrem e pela convicção, parafraseando a sentença bíblica, de que os homens não nasceram para o Estado, mas o Estado para os homens.             


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