Rui de Azevedo, Historiador (breves palavras)

O sentido histórico, ou mais vigorosamente, o gosto de relatar, foi entre nós contemporâneo do alvorecer do sentimento nacional, e aos cronistas, como aos poetas, embora em grau menor, cabe a glória de haverem concorrido para a criação da nossa linguagem. Não obstante tão remota antiguidade, a história pátria, com a noção perfeita da perspetiva das idades, com intuitos científicos, com a disciplina de uma metodologia crítica, data do século passado; é obra de João Pedro Ribeiro e, sobretudo, de Herculano, continuada dignamente, para só evocar os grandes que a morte arrebatou, por Gama Barros, Alberto Sampaio, Braamcamp Freire. Pela lição de tão notáveis historiadores, pelo rigor dos seus escritos, cuja sólida estrutura parece desafiar as vicissitudes dos critérios e das preferências, os estudos medievais lograram entre nós uma disciplina científica que os outros períodos históricos ainda não conhecem, abandonados, como se encontram, mais à curiosidade erudita que à severidade da crítica sábia.

Pode pensar-se com alguma razão que a mensagem de tão grandes mestres se acompanhou de um certo desapego da modernidade, senão da limitação do horizonte histórico; porém, força é reconhecer que fundaram uma tradição na nossa historiografia e impuseram a investigação medieval como inigualável e primaz no estabelecimento crítico das fontes, na apreciação dos factos, e na formação da imparcialidade do juízo, requisito essencial e difícil do historiador.

Foi esta admirável e gloriosa tradição que instruiu o novo colaborador do Álbum Figueirense, o Sr. Dr. Rui de Azevedo, cuja obra, em pleno desenvolvimento, longe ainda do seu termo, começa a erguer-se, dentre a nossa literatura histórica contemporânea, com o ímpeto e vigor das criações duradoiras.

Como a grande maioria dos historiadores portugueses, o Sr. Dr. Rui de Azevedo é um autodidata. Formado na secção germânica da Faculdade de Letras de Lisboa, o seu curso não o conduzia naturalmente à investigação medieval; foi o sentimento de ternura familiar, acompanhado da devoção à terra natal, que do germanista diplomado fez o historiador emérito de hoje.

No espólio de seu primo, o Dr. Álvaro Rodrigues de Azevedo, cujo nome os eruditos sempre recordarão como editor (1869) do Livro II (Desco­brimento da Madeira) das Saudades da Terra e o do Céu, de Gaspar Frutuoso, e os etnógrafos e historiadores da literatura como compilador e crítico do Romanceiro do arquipélago da Madeira (1880), encontrou o borrão de uma monografia sobre Benavente.

É sempre difícil surpreender a nascente de qualquer atividade do espírito, mormente quando a perseverança transforma o ténue fio inicial em curso caudaloso, para onde afluem todas as dúvidas incitadoras e todos os juízos criadores; no entanto, creio não errar pensando que foi a dedicação respeitosa à memória deste seu parente que converteu o nosso ilustre cola­borador às investigações históricas. Com efeito, decidido a dar à estampa a obra de seu parente, a qual viu a luz pública em 1926, com o título — Benavente, Estudo histórico-descritivo. Obra póstuma, continuada e editada por Rui de Azevedo —, a breve trecho verificou que apenas poderia apro­veitar «quase integralmente» os dois primeiros capítulos, e quanto aos restantes teria de completar as notas do autor com inéditas e originais investigações.

Na aparente simplicidade, esta estreia literária continha em germe o desenvolvimento futuro da obra pessoal do Dr. Rui de Azevedo. Ao preparar para o prelo o referido manuscrito deparara-se-lhe o problema das origens da povoação de Benavente, e porque esta radica na iniciativa colonizadora de D. Sancho I, a qual, ao cabo de algumas gerações, fez de paúis e marnéis a fértil região de hoje, a curiosidade científica e a probidade da sua cons­ciência intelectual incitaram-no ao estudo sistemático das origens e desen­volvimento das povoações ao sul do Mondego.

Num encadeamento admirável de rigor lógico e de exatidão documental, o Dr. Rui de Azevedo alargou posteriormente o âmbito das primitivas inda­gações; assim, em 1935, nos Documentos falsos de Santa Cruz de Coimbra (sécs. XII e XIII) — vol. I de uma prometida série de Estudos de diplomática portuguesa a propósito da doação de D. Afonso I" dos direitos eclesiásticos de Leiria ao mosteiro de Santa Cruz, examinou notavelmente o grave pro­blema da fidedignidade dos documentos do século XII, o século dos falsá­rios, proporcionando-se-lhe então o primeiro contacto com algumas povoa­ções do alfoz figueirense, e em 1936, no Mosteiro de Lorvão na reconquistacristã, ultrapassou a região do Tejo para estudar o povoamento de parte do território entre Douro e Mondego. Ao cabo de 12 anos de convivência íntima e silenciosa com a documentação medieval, o Dr. Rui de Azevedo anuncia já as Vilas do Sul de Portugal, da qual o capítulo introdutório da História da expansão portuguesa no mundo se pode considerar o primeiro ensaio.

Em quem tão sábia e diligentemente trabalha, é de seguro vaticínio o destino glorioso da anunciada obra; porém, enquanto o prelo a não revela na complexa integridade do seu conjunto, para honra da nossa erudição contemporânea saudemos nós, figueirenses, com grato reconhecimento, o autor emérito das melhores páginas da história medieva do nosso alfoz.

Figueira da Foz


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