Um discípulo de Descartes ao serviço da restauração - João Gillot

Na complexidade de problemas que o sucesso da Aclamação do Duque de Bragança como rei natural e legítimo impôs com inadiável urgência, destaca-se o dos preparativos militares em ordem à defesa e conservação da Independência recuperada.

Dissipados rapidamente os receios dos primeiros dias, dominados os ressentimentos dos interesses criados e das vaidades ofendidas, calados os vaticínios dos assustadiços, que recordavam o insucesso das alterações de Évora, foi para as fronteiras que se volveram imperativa e ansiosamente os cuidados dos que corajosamente assumiram a responsabilidade histórica de firmar a ressurreição do Estado.

«Tudo faltava, e tudo instava pela brevidade», disse Rebelo da Silva com límpida concisão, mas no atropelo e improvisação desses dramáticos meses a todos os responsáveis pareceu claro que a política militar tinha de ser, como de facto foi pelo império das circunstâncias, essencialmente defensiva. Podia, porém, a defesa lograr-se com os meios tradicionais de combate?

Bastariam, porventura, a reorganização dos quadros militares, a atividade do conselho de guerra e da junta do provimento das fronteiras, a dedicação e o ânimo dos comandos e dos soldados, por mais heroica que fosse a sua capacidade de sacrifício?

No admirável século do Génio, que viu o desenvolvimento insuspeitado das matemáticas, a criação assombrosa da física, e a aurora das maravilhosas aplicações técnicas, a defesa, para ser eficiente contra o invasor e poupar o sangue dos que lhe faziam face, carecia de se apoiar severamente nos novos dados científicos.

A engenharia militar, baseada nos novos conhecimentos matemáticos e físicos, tornara-se uma das formas capitais da defesa; por isso não surpreende que D.S João IV, à falta de portugueses competentes, recorresse aos seus aliados da França e da Holanda para lhe prestarem, além de outras formas de assistência, o concurso precioso de engenheiros especializados.

Graças às beneméritas investigações do académico Christovam Ayres, na Historia orgânica e política do Exercito Português, possuímos hoje abundante informação acerca destes engenheiros, e, em parte, dos seus planos e realizações. De um apenas me desejo ocupar, e tão-somente para salientar a interferência do filósofo Renato Descartes no seu contrato e vinda para Portugal.

A notícia da Restauração, acolhida pelos holandeses com esperançosa alegria, pelo golpe que vibrava no poderio castelhano, foi seguida, como se sabe, de vários instrumentos diplomáticos que, por assim dizer, se condensaram na convenção de «trégoas e cessação de hostilidades», de 12 de Junho de 1641, entre Portugal e as Províncias-Unidas. Descartes, que por então vivia na Holanda, entregue às suas geniais lucubrações, seguia com empenho a vida de um jovem, de nome João Gillot, de família francesa huguenote, que pela sua confissão religiosa emigrara para a Holanda. O filósofo tinha este jovem em grande conta; em carta de 9 de Março de 1638, a Constantino Huygens, no ano imediato ao da publicação do Discurso do método, dizia ao seu poderoso correspondente que Gillot era «le premier et pres que le seul disciple que j'aie jamais eu et le meilleur esprit pour les mathematiques» , e dias depois, em 31 de Março, em carta ao Padre M. Mersenne, reputava-o «celuy du monde qui scait le plus de ma Methode» .

Em tão severo julgador, este elogio, além de raro, é altamente significativo. Compreende-se, no entanto. Se é duvidoso, embora muitíssimo provável, que Descartes o houvesse educado sob as suas próprias telhas, é certo que lhe patrocinou o conhecimento e acesso junto da poderosa família dos Huygens de Zuylichem. Assim é que, por 1633, Gillot estava ao serviço de David Le Leu de Wilhem, Conselheiro de Estado, casado com Constantia Huygens, irmã de Constantino, graças à protecção de Descartes, e em 1635, em carta de 28 de Outubro, Constantino Huygens dava parte ao filósofo da estima em que tinha o seu discipulo.

Estes factos, altamente significativos, mostram claramente quanto Gillot beneficiava da proteção do seu mestre, junto de uma família tão notável na história política da Holanda e no progresso da física e das ciências exatas.

Gillot correspondia às benemerências do seu protetor; em 1636 passou todo o ano junto dele, em Leide, e mais tarde, em 1638, acompanhou-o com devoção científica nas polémicas com Fermat acerca da Dioptrica e do De Maximis et Minimis, resolvendo até, por incumbência de Descartes, rapidamente, no curto espaço de uma breve visita de dois dias a Santpoort, um teorema do matemático tolosano sobre os números, que Mersenne enviara ao filósofo, e cuja solução, de 29 de Junho de 1638, posterior e diferente da de Descartes (31 de Março de 1638), o próprio Fermat reconheceu dever ser mantida .

Depois de uma breve viagem a Inglaterra, Gillot ensinou as matemáticas, por 1638, com Schooten, na escola militar de Leide, porventura ainda devido à intervenção de Descartes, que por este mesmo ano desejou enviá-lo a Paris para explicar a sua Geometria aos matemáticos franceses. A confissão religiosa de Gillot obstou a esta viagem, retendo-o na Holanda, onde por 1640 ensinava as matemáticas aos sobrinhos do príncipe, futuro Guilherme II de Orange.

Gillot, cuja idade regulava então por 26 anos , ambicionava um emprego estável e rendoso, e foi a Restauração que, afinal, lho proporcionou. A notícia do grande sucesso parece ter sugerido a Descartes a possibilidade de o seu discípulo ser contratado para Portugal como engenheiro militar; se este facto é duvidoso, é no entanto, incontestável que foi a amizade e a interferência do filósofo junto de Constantino Huygens, então conselheiro de Estado, que lhe proporcionaram o contrato e vinda para Portugal.               

São três as cartas de Descartes sabre este assunto, todas dirigidas a Huygens:

1.a) Carta de 16 de Janeiro de 1641, a qual mostra o interesse de Descartes pela colocação do discípulo, apesar das desconfianças e motivos de queixa: Cependant, Monsieur, ie vous suis obligé du som n que vous avez eu de l'affaire de Gillot, car bien que l'aye esté cy devant fasché contre luy à cause de ses friponneries, ie ne laisse pas de prendre encore part au bien qu'on luy fait, et iima tant promis de se rendre honneste homme que ie le veux esperer. (Roth, eD.s cit. , pp. 149-51).              

2.a) A carta de Abril de 1641, revela a participação de Huygens no contrato de Gillot: Monsieur, Celle cy n'est que pour continuer mes importunitez à vous recommander le Sieur Gillot pour avoir employ en Portugal. Car ii doit auoir apris que ce sera son Altesse qui donnera luy mesme à l'Ambassadeur (de Portugal) tous ceux qu'il doit emmener auec soy, et il est bien ayse d'estre des premiers à offrir son seruice. Aussy que i'ay parlé à ses parens qui sont fort resolus à luy leisser faire ce voyasge, et ie croy qu'il n'est pas mauuais qu'il y mange vn peu de vache enragée, mais neanmoins aux... meilleures conditions qu'il se pourra.          

Il a vu toutes les occasions qui se sont presentées depuis 6 ou 7 ans, comme entre autres les sieges de Breda, de Louuain, et Schencke Schans, et vous sçauez qu'a ceux qui ont vn peu d'esprit ii n'est pas besoin de longue experience pour estre ingenieurs. Ii dit que M.r, de Maisonneue, qu'il a v a aux occasions, luy a promis de le commander. Et pour moy ie ne puis dire autre chose sinon que ie vous seroy entierement obligé de tout ce qu'il vous plaira faire pour luy, et que ie seray toute ma vie, Monsieur, vostre tres obeissant et tres passioné seruiteur, Des Cartes. (Roth, eD.s cit. , pp. 151-152).               


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