A escola capitular de Guimarães e a legacia do Cardeal João de Abavila

Durante a Idade Média instituíram-se Colegiadas em várias povoações, notadamente em Guimarães, Porto, Coimbra, Santarém, Valença, Ourém, Barcelos e outras terras , presididas ordinariamente por um prior e cujos membros não raro viviam em comum . Pela antiguidade, pelos recursos, pela importância e pela continuidade da ação docente, nenhuma igualou a de Guimarães, que primeiramente teve a invocação do Salvador, depois a de Santa Maria e, após 1342, a de Nossa Senhora da Oliveira, e cuja origem se remonta aos princípios do século XII como transformação do mosteiro duplex fundado e dotado por Mumadona no século X (959). Na Verdade, tudo indica que o ensino em Guimarães tem raízes antigas, diretamente ligadas à vida eclesiástica do burgo e, especialmente, à da sua Colegiada. No século XI (1042) a notícia de um «magister Racemirus» sugere a existência de um ensino, possivelmente dos rudimentos de Gramática, e a referência no século imediato ao mestre Bernaldus robustece naturalmente esta hipótese; no século XIII, porém, a hipótese volve-se em certeza, pois em 1217 havia na Colegiada dois mestres, o «Archidiaconus magister Silvester» e o «Magister Iohannes thesaurarius», e em 1220, no Mosteiro de Santa Marinha da Costa, a par de Guimarães, um «Magister Menendus frater Costensis».

Esta última notícia inculca, com verosimilhança, que o mosteiro tinha então uma escola claustral, muito provavelmente interior, isto é, reservada aos monges ou aos pueri oblati, funcionando paralelamente à da Colegiada, e é de crer que a vida de uma e outra tivesse sido precária e instável, dependendo mais da dedicação dos mestres que de condições permanentes. Da escola claustral nada se sabe, mas da escola capitular, embora sejam escassas e mirradas as notícias, sabe-se o bastante para permitir a afirmação de que a consolidação e robustecimento da sua existência se relacionam diretamente com as medidas postas em prática pela Santa Sé para dar realidade às resoluções do IV Concílio de Latrão (1215), tendentes à instituição do ensino da Gramática e da Sacra pagina por mestres prebendados.

Durante o século XII, na gestação da renascença intelectual do século XIII, tornou-se sensível nos próprios países mais esclarecidos, como a França, o contraste entre o obscurantismo dos meios provincianos e o florescimento de algumas escolas eclesiásticas, verdadeiros oásis, notáveis pelo prestígio dos seus mestres. Para obviar a tal situação, determinou o III Concílio ecuménico de Latrão, em 1179, no cap. XVIII, Quoniam Ecclesia Dei, que cada Sé catedral consignasse um beneficio destinado ao sustento de um mestre, com o encargo de ensinar gratuitamente os clérigos e estudantes pobres; que nas demais igrejas e mosteiros que já haviam tido escola, esta fosse restabelecida, e que as autoridades eclesiásticas não empecessem a gratuidade da licentia docendi, que deveria ser concedida a quem quer que fosse idóneo .

Estas disposições ficaram, no geral, letra morta, mas porque exprimiam a necessidade real de muitas províncias da cristandade, o IV Concílio de Latrão confirmou-as e ampliou-as passados trinta e seis anos, em 1215.

Com efeito, este Concílio determinou no cap. Quia nonnullis que nem só às catedrais, mas a todas as igrejas que o pudessem fazer, cumpria a obrigação de abrir escola, na qual um mestre, nomeado pelo prelado respetivo assistido do cabido ou capítulo, ensinasse gratuitamente aos clérigos dessas e de outras igrejas a Gramática e outras disciplinas que estivessem ao seu alcance. As catedrais metropolitanas deveriam, além disto, sustentar o ensino de um teólogo, a quem cumpriria ensinar a Sagrada Escritura (Sacra pagina) e o ministério pastoral; e quando não pudessem suportar a despesa conjunta do mestre de Gramática e do lente de Escritura prover-se-ia ao sustento daquele com os rendimentos de outra igreja da cidade ou da diocese. Os mestres usufruiriam o rendimento de uma prebenda enquanto ensinassem, sem por este facto adquirirem a dignidade inerente ao canonicato.

Como se vê, o concílio decretou que se estabelecesse nas sedes episcopais ou de colegiadas o ensino da Gramática e nas arquiepiscopais, além deste, o da Sacra página, mas, uma vez mais, os prelados não se apressaram a dar cumprimento a tais resoluções. Perante o facto, a Santa Sé chamou a si o caso, procurando resolvê-lo pela ação direta do Pontífice e pela intervenção de Legados.

Em cartas de 16 de Dezembro de 1219 já o papa Honório III se lamentava da inércia dos prelados metropolitas, que aliás se desculpavam com a dificuldade, sem dúvida real, de não encontrarem pessoas competentes para o ensino da Sacra pagina; por isso decidiu autorizar os prelados e colegiadas a sustentarem bolseiros que estudassem Teologia, os quais poderiam gozar os benefícios que para tal lhes fossem consignados durante cinco anos consecutivos .

Ignoramos se esta medida, que concorreu para aumentar a população escolar de Paris, que então detinha o privilégio do ensino universitário da Teologia, atingiu o nosso País; o que sabemos é que a consolidação da escola capitular de Guimarães se filia na intervenção do cardeal-bispo de Sabina (1227), João Halgrin d'Abbeville (t 1237), que durante os anos de 1228 e 1231 visitou Portugal e Espanha como legado pontifício e pouco depois participaria decisivamente na canonização de Santo António de Lisboa.

Gregório IX (1227-1241), que fora seu condiscípulo em Paris, onde João de Abavila ensinara Artes e Teologia e lograra fama como pregador (até 1217), incumbira-o de dar realidade na Península a diversos cânones do IV Concílio Lateranense (1215), de tão grande relevo na teologia dogmática e na disciplina do clero, e de pregar a cruzada contra os Sarracenos, além de alguns outros objetivos concretos nos Estados peninsulares; pelo que a Portugal respeita, é de crer que um destes fosse o apaziguamento das dissensões entre a Igreja e a Coroa, tão ásperas especialmente durante a menoridade de D.S Sancho II.

Muito ficaram devendo a Igreja e a paz civil a esta legacia , mas pelo que ao nosso assunto respeita destaca-se a atenção que lhe mereceu a escola capitular vimaranense ". A mais notável das colegiadas portuguesas fora visitada também pelo prestigioso cardeal-legado, que teve como coadjutor e penitenciário durante a sua estadia na Península Ramón de Penafort, mais tarde canonizado. Formavam então a Colegiada trinta e cinco cónegos e dez porcionários ou raçoeiros e, segundo parece, ocupava a cadeira prioral o mestre D.S Martinho, cuja qualificação sugere que acumulava as funções docentes com as do priorado.  

Do que se passou no capítulo nada chegou até nós, embora possa suspeitar-se a existência de discrepâncias. Após a visitação e da sua saída de Portugal principal fundamento do presumível desacordo, em 6 de Agosto de 1229, promulgou de Espanha, em León, por meio de uma carta dirigida ao Prior da Colegiada uma série de reformas, entre as quais se conta, pelo que ao ensino respeita, o estabelecimento perpétuo de um mestre de Gramática com o benefício de uma prebenda inteira e quando esta lhe não bastasse ser-lhe-ia dada a gratificação de 14 áureos, tirados dos rendimentos da Colegiada

Parece ter sido esta a única disposição de carácter pedagógico resultante da benéfica visitação de João de Abavila, que nela pôs manifesto cuidado em assegurar a continuidade do ensino da disciplina primária do Trivium; mas tenha ou não sido única, e admitimos como provável a negativa, ela relaciona-se com as medidas que tomou contemporaneamente em Espanha relativamente ao estabelecimento do ensino da Gramática, em execução das resoluções do concílio lateranense, designadamente no concílio de Lérida, de 1229, a que presidiu, e na constituição pela qual como que compelira o bispo de Barcelona a instituir este ensino.


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