No centenário de Braamcamp Freire. Reflexão breve de um seu editor

Há na personalidade de Braamcamp Freire o homem representativo do modo de ser e do sentido da Vida do final do século XIX; o cidadão inde­pendente e liberal que quis ter por mortalha o burel de franciscano; o fidalgo de estirpe e de maneiras, herdeiro de um nome justamente célebre e respei­tável na História do Constitucionalismo desde 1820, que foi o Presidente das Constituintes da primeira República; o benemerente de Santarém, que lhe ficou devendo um dos mais valiosos legados bibliográficos da Província; o editor benemérito e sem par do Arquivo Histórico Português; o divulgador escrupuloso de centenas de documentos; o erudito diligente das Notas às Notícias da Vida de André de Resende, de Leitão Ferreira; o inquiridor severo dos Brasões da Sala de Sintra e da Armaria portuguesa; o monografista apurado de individualidades e de acontecimentos do nosso século XV; o histo­riador insigne nas Notícias da Feitoria da Flandres, e o biógrafo imorredoiro de Gil Vicente trovador, mestre da balança.

Todas estas facetas se impõem a quem pretenda discorrer acerca de uma personalidade tão ricamente dotada e que por mérito próprio ficou perduravelmente inscrito na melhor galeria da nossa Erudição e dos rasgos altivos e benemerentes do Carácter.

Pessoalmente, todas e cada uma destas facetas me cativam e seduzem, por ecoarem profundamente na minha maneira de sentir Portugal, de compreender a nossa vida cívica e, em parte, de considerar o passado histórico da nossa Pátria.

Não obstante, é para uma reflecção íntima que o meu espírito se sente irresistivelmente solicitado na evocação do dia centenário de Braam- camp Freire.

É que tive a honra de ser seu editor póstumo, como último administrador que fui da Imprensa da Universidade de Coimbra, extinta, demolida, dispersa; e porque jamais dei ordem para que se imprimisse um livro sem que à minha consciência moral e intelectual se impusessem razões, pelo menos justificáveis, posso em consequência falar da razão de ser dos meus imprimatur de há vinte anos, pouco mais ou menos.

Braamcamp Freire fora um dos Grandes de Portugal, pelo escrúpulo no trabalho intelectual, pela altivez de Carácter, pela coragem cívica, pelos rasgos e benemerências, pela solidez da obra que escrevera.

Tanto bastava para que o seu espólio literário se impusesse à consideração de quem administrava a velha oficina de tradições sábias e equânimes, isto é, de apreço e acolhimento de todas as atitudes e de todos os escritos que pudessem contribuir para se configurar a compleição da alma portuguesa, para se revigorar o sentimento pátrio e para se dilatar o horizonte da cultura intelectual.

Com ser notáveis, estas qualidades não abrangiam completamente todo o alcance social da personalidade do autor dos Brasões da Sala de Sintra e da Crítica e História. É que Anselmo Braamcamp Freire assinalara uma atitude mental e uma metodologia histórica cuja lição silenciosa e prestante cumpria — e cumpre — divulgar e tornar acessível.

Pensemos um instante no contraste que há entre o opinar de Oliveira Martins, sempre à espreita do menor ensejo para vincar o seu modo de ver quando não o travo das suas desilusões e desânimos; o teorizar de Teófilo, que no mais insignificante dos acontecimentos logo encontrava oportunidade para aludir a conceções filosóficas gerais; e o sentido prático e concreto de Braamcamp Freire, cuja conformação mental lhe ditava o estabelecimento de problemas precisos e de âmbito limitado, no qual a inquirição se pudesse mover sem extravios nem confusões.

Foi Oliveira Martins fulgurante no talento, artista no evocar, sagaz no compreender e de visão larga no poder de síntese; mas onde o amigo da verdade escrupulosa que não hesite diante das suas audácias de opinioso e não sinta o quebradiço das suas construções, pela leveza dos materiais e pela fraqueza da travação lógica?

 Ninguém excedeu Teófilo no poder de relacionar, nem ninguém, como ele, num holocausto admirável de tenacidade, aplicou a vida, dia a dia, quase durante sessenta anos, na ambição benemérita e gigantesca de erguer a obra máxima do génio nacional que seria a História da Literatura Portuguesa; mas onde o leitor de ânimo isento e de espírito crítico que não trema diante das suas teorizações de sistemático impulsivo e apressado e se não apavore com a altura da pilha de erros e de juízos precipitados, que vê crescer à medida que avança pelas páginas dos seus livros?

Braamcamp Freire distou muito destes talentos insignes, tanto na capacidade de abstrair, e, sobretudo, de generalizar, como nos recursos estéticos da palavra escrita; mas excedeu-os sem confronto na solidez do juízo e no escrúpulo da afirmação. Onde eles arrebatam, Braamcamp Freire informa ou esclarece, e em vez de inculcar opiniões, interpretações gerais ou ideias, dá-nos factos criticamente estabelecidos e apurados.

O apuramento crítico de factos e estabelecimento das suas conexões imediatas não são, porventura a condição primária da atividade do espírito que aspira à verdade e à certeza?

Por isso, para o amante da verdade criticamente estabelecida, os dotes do talento expositivo de Braamcamp Freire procedem de uma virtude mais digna de apreço que o fulgor da forma e que cumpre divulgar pelo sentimento de reflexão e de responsabilidade que gera e alenta.

Demais, cabe ainda a Braamcamp outro título como historiador. É que a sua mente e o seu exemplo não deixaram apagar o facho que João Pedro Ribeiro, Herculano — o incomparável! — E Gama Barros ergueram e cujos raios de luz deviam iluminar a nossa Idade Média, de preferência a qualquer outra época; nem tão-pouco o seu esforço esmoreceu perante a mole imensa da documentação inédita, pois um dos seus grandes méritos reside precisamente em não ter deixado alguns núcleos documentais na mesma jazida de ignorância em que os encontrara. Por isso, na linha da nossa melhor tradição historiográfica, Braamcamp Freire situou as preferências da sua investigação no trânsito da Idade Média para a Renascença, detendo-se mais sobre as pessoas que sobre as instituições e ligando mais atenção aos acontecimentos que às suas raízes ou projeções ideológicas.

Pelos temas, pela metódica e pela intenção, Braamcamp Freire, foi, pois, um historiador de predominante sentido prático e com aquela intuição do concreto que o levou a dizer pitorescamente que se não metia «em cavalarias altas e rasteiramente me vou entretendo em pesquisar a vida dos nossos maiores». Não obstante, como todas as personalidades poderosamente dotadas, desprendia-se da sua obra e do seu exemplo o eflúvio da irradiação, o qual se não alcançou o volume de uma escola foi, em todo o caso, bastante para singularizar o grupo de eleitos, à cabeça dos quais cumpre colocar Sousa Viterbo, Pedro de Azevedo e o Dr. António Baião — único sobrevivente, e oxalá que por muitos anos — que deu vida ao Arquivo Histórico Português.

Tais foram algumas das razões que há vinte e tal anos moveram o então administrador da Imprensa da Universidade de Coimbra a ter o propósito do mais leal entendimento com a Ex.ª— Câmara de Santarém e a exarar o imprima-se das obras de Braamcamp Freire que vieram a público com a insígnia honrosa da velha tipografia. O funcionário de então é hoje apenas um modesto estudante que forceja por ser aplicado e que do seu canto recatado e solitário faz votos por que se não apague de todo o que há de vivo e de permanente no legado moral e intelectual de Braamcamp Freire.


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