Cartas a João de Barros

Meu Exmo. e prezado amigo    

Que o novo ano lhe decorra próspero e lhe dê a reparação moral! Muito e muito obrigado pelo seu artigo, que me confundiu. Sem dúvida, acentuou umas das ideias que — vaidade à parte — considero nucleares nesse trabalho e, sobre ser nova, essencialmente verdadeira. Esse ensaio foi publicado como tentativa de método e indicação de alguns resultados, porque preparo um livro (no sentido pleno da palavra), com todo o aparato de erudição e crítica. É possível que antes de o redigir, publique um segundo ensaio sobre a formação intelectual e moral de Antero, quer dizer, as origens da mentalidade que se traduziu nas «Odes Modernas». Há, como verá, um pequeno mundo de coisas novas para a nossa prefiguração do século passado. É possível que dentro de três meses lhe mande um volume contendo o epistolário de Antero com Oliveira Martins — cerca de 100 cartas inéditas.    

São admiráveis, e a sua publicação vem na hora própria. Um exame de consciência levou-me a afugentar-me da pura erudição em que tenho vivido, não por me sentir outro, mas por verificar a necessidade, quase visceral, de reagir contra a torpeza e a insignificância das ideias e dos valores reinantes na hora atual. Resolvi, pois, discretamente, silenciosamente, sem nomes, mas tenazmente, reagir, lançando uma biblioteca filosófica. Dentro de dois meses aí lhe irão ter um livro de Renouvier, (traD.s pelo Sérgio), o «Discurso do Método», de Descartes, a «Metafísica dos Costumes», de Kant, (traD.s doalemão), os «Ensaios Políticos», de Spencer (traD.s do Inglês), a biografia de Espinosa, de quem estou traduzindo a «Ética» . Quero que esta Biblioteca seja um acontecimento em 1930 — e acontecimento anónimo, porque cada vez mais sinto radicado o meu velho sentimento — hoje ideia clara — de que é necessário que as coisas apareçam feitas sem se saber como, nem por quem. Guerra à publicidade, no que ela pode ter de relevo pessoal! Penso que foi este o mérito inegável de Giner de los Rios, e sinto ter sido o contrário o defeito máximo de B. Machado . Já uma vez lho disse, e as razões com que em vão me pretendeu justificar a sua vida não me convenceram.

Creio que estou em dívida consigo, acerca dos «Dispersos» de Camilo: pode dizer-me o número do seu exemplar e até que volume possui? Que o novo ano nos liberte! Por mim, obstinadamente continuarei na mesma rota, cada vez me interessando menos a ação política, e cada vez mais atraído para a ação obscura e impessoal de trabalhar para amanhã e de acarinhar e formar uma rodazinha de rapazes, com uma conceção grave da vida, direi quase de protestantes ou kantianos, se quiser. Aperta-lhe gratamente as mãos o seu amigo e admirador.

Joaquim de Carvalho

1/V111/934

Meu querido Amigo:

Há precisamente um mês que recebi a sua carta, a qual me penhorou cordialmente. Respondi neste intervalo a cento e tal cartas, mas deixei para agora as dos amigos mais estimados. Queria obter informes e formar um juízo claro, e com efeito eu posso dizer-lhe, de uma forma categórica, que o silêncio oficial e a demissão do Sousa Pinto são prova das razões puramente pessoais. De nada me acusam, e até me dão a honra de ser coveiro dos melhores anos da minha vida. A coisa foi longamente premeditada e decantada, e no fim apenas se justifica com a atual Constituição, que não permite ao Estado a concorrência com a indústria particular. Nada mais. Verifica-se, portanto, que oficialmente o Estado não quer saber destas coisas que trazem consigo a defesa da língua, das letras e da cultura desinteressada. Agora começa para mim vida nova. Tenho que lutar, e novamente, pelo pão caseiro, e de me defender, aqui e para além da Estação Velha, com o trabalho infatigável. Ao editor, que se comprazia no trabalho alheio, terá de suceder o autor. Ânimo não me falta; possa eu conquistar o mínimo de vida que me consinta o trabalho de gabinete!

Sempre grato e afetuosamente

Joaquim de Carvalho

Meu prezado amigo:                                                                                                             9/5/935

Releve-me o silêncio. Li e reli o seu livro Pátria Esquecida — título admirável, pela sugestão simbólica e não menos pela afirmação clara e lapidar da índole dos escritos que o constituem. Da Grécia, musa do ocidente, a este livro, há continuidade nas ideias e sentimentos, mas o estilo creio ter ganho em nitidez, em beleza, uma maior consciência de prosador. Poeta num e noutro, a sua Pátria Esquecida, no entanto, deu-me a sensação de haver enriquecido com este livro os dons do seu espírito, porque à simpatia universal e à exaltação poética e criadora aditou a capacidade crítica, isto é, o juízo pelos contrastes e o sentido da nuance. Nada falta a este livro: o manifesto das ideias gerais, e a sua aplicação crítica: e se aquelas definem o homem e o artista, esta, um raro talento crítico, — raro, pelo método, raro sobretudo pela nitidez do juízo. Os ensaios sobre Cesário e A. Patrício são a prova, e que prova! Há no seu livro muitas sugestões, assim para a compreensão da sua obra pessoal, como para o património comum e por assim dizer objetivo. Desejo chamar para elas a atenção, e se os fados consentirem, este verão, que passarei na casa paterna, no Pinhal, escreverei em torno e a propósito do seu livro qualquer coisa.       

Se demorei o agradecimento foi pela esperança de fazer esse escrito durante o trabalho lectivo; impossível, adiá-lo-ei para a tranquilidade das férias. Sobre o seu helenismo refleti já: comparei-o com o paganismo de João Barreira e o dionisismo de T. Gomes, e se não fossem certos escrúpulos teria publicado essas notas, quando aquele Luís da Cunha Gonçalves teve o descaramento e a indecência de ejacular umas imundícies, na Academia, sobre «o milagre grego». Le Gentil , no seu recente livrinho, aliás bem feito, não deu à sua obra e à feição que ela representa o lugar devido; se lhe cumpria acentuar o particularismo, cumpria-lhe também dar algum relevo à posição de universalismo sui generis que a sua obra constantemente acusa, quer pelo espírito, quer pela interpretação dos velhos e sempre eternos mitos. Nada tenho para lhe mandar agora. Tenho um livro acabado, sobre Oróbio de Castro e o espinosismo; foi escrito com aquele ânimo com que Jules Simon escrevia, sob o Segundo Império, quero dizer, o tema sofre constantes desvios para a reflexão moral e política. Onde publicá-lo? Eis o problema; aqui não é fácil, pela Academia não vejo jeito, por forma que aguardo informes da Reitoria da Universidade de Lisboa. Se esta porta se fechar, terei de recorrer à Seara Nova para que o publique em pílulas. Com os meus agradecimentos e felicitações peço-lhe que mande sempre o seu grato amigo e admirador.

Joaquim de Carvalho

Figueira, 2/III/946

Meu muito prezado Amigo:


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Vamos corrigir esse problema