Uma lição de comportamento cívico. Carta a Carlos Alberto da Costa Soares

[O Prof. Doutor Joaquim de Carvalho era formado em Direito e em Letras, tendo acabado por seguir o magistério na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Professor insigne, era por todos respeitado como uma alta figura moral e intelectual. O Dr. Carlos Alberto da Costa Soares, Delegado do Procurador da República em Oliveira de Frades, dirige-se-lhe em 14 de Novembro de 1944, informando-o de que fora encarregado pelo Governo de proceder a uma sindicância a um professor do Liceu que, à passagem de uma procissão do Corpo de Deus, se não levantara do banco ao lado nem se descobrira, tendo acabado por fazê-lo, a uma intimação de um polícia. O Dr. Carlos Alberto da Costa Soares insiste com uma segunda carta pelo respeito que consagrava ao Mestre de Coimbra e acaba por obter a seguinte resposta:]   

Exmo. Senhor, 

Releve-me V. Exa. a demora da resposta à sua honrosa carta, mas esta extraviou-se-me aqui, só a encontrando agora, após porfiada busca, dentro de um livro.      

Entrando no assunto, e com carácter particular, como é óbvio, encaro-o sob dois pontos de vista:       

a) Geral in abstrato. O ato deste professor é censurável moralmente. Crente de outra religião que não a Católica ou mesmo incréu, cumpria-lhe mais do que ao comum dos indivíduos exprimir o público respeito pelas crenças alheias pois é pelo menos este respeito uma das condições de qualquer sociedade civilizada. Se isto lhe custava à sua consciência, por qualquer motivo o seu dever era afastar-se do local e das circunstâncias que ditariam esse ato de respeito e de boa educação.          

Será, porém, além de censurável punível?        

b) Em concreto. Julgar em matéria punível legalmente implica sempre uma individualização isto é, conhecimento da pessoa e das circunstâncias do ato cometido, imediata e, se há caso disso, mediata ou remotamente. Em rigor não posso julgar sob este aspeto mas apenas ponderar.

Observo em primeiro lugar que esse professor pode sentir-se ou julgar-se vítima de uma perseguição eclesiástica e o facto, se não desculpa atenua o delito mormente se o seu génio for irascível e os seus hajam sofrido com tal perseguição.

Em segundo lugar, pode dar-se o caso de ele desejar significar pelo seu ato o protesto público contra a ingerência do báculo do Pastor no ofício de Pretor não praticando em sua consciência um ato antirreligioso mas anticlerical. A distinção é difícil de fazer praticamente e em qualquer caso é sempre pelos atos que se responde; por isso o conhecimento desta hipótese pode também desculpar ou antes atenuar mas não isentar.

Em resumo: quer a moral social hoje vigente, que estabelece como direito e dever o respeito pelas crenças religiosas na tradução externa dos seus ritos e práticas, quer os deveres gerais inerentes à função docente, que em qualquer dos seus graus implica, pelo menos, o respeito pelo «homem ideal» que a nossa civilização concebeu, o qual tem, dentre outras qualidades, de afirmar o respeito pela liberdade de consciência, admitem que o castigo seja o desfecho deste ato. Até onde irá, porém? A resposta implica a «individualização», e, como disse, só V. Exa. pode apreciá-la completamente. Atrevo-me, porém, a pensar, em face da inquietação moral que a sociedade portuguesa padece nos nossos dias, e considerando que se tem levado, por vezes muito longe, o abafamento e sequestro das opiniões dissidentes — que são também uma condição necessária de qualquer sociedade civilizada —, que são de admitir circunstâncias atenuantes. A repreensão, dando ensejo público à afirmação dos direitos e dos deveres da consciência religiosa seja qual for, talvez fosse socialmente mais eficiente que outra penalidade, e, além disto, mais caritativa e humana.

Aqui tem V. Exa. minha opinião que por dever lhe exprimo, e também por gratidão.

Atenta e respeitosamente

Joaquim de Carvalho


?>
Vamos corrigir esse problema