Carta a Cristóvão Moreira de Figueiredo

Prezado Amigo e Sr. Cristóvão Moreira de Figueiredo

Muito obrigado pelas primícias do estudo que o seu amor de vouzelense dedicou a João Ramalho, o Patriarca dos bandeirantes. Penhorou-me deveras a sua atenção, tanto mais que ela deu ensejo à recordação de um dos dias mais agradáveis da minha estadia no Brasil e ao incentivo de algumas leituras, que me ajudaram a avaliar o alcance do seu trabalho e a penetrar um tanto nas densas e enigmáticas dificuldades suscitadas pela existência do seu imorredoiro conterrâneo no planalto de Piratininga.

Jamais posso esquecer, com efeito, a inauguração, no dia 10 de Maio de 1953, da Exposição industrial de Santo André da Borda do Campo, comemorativa do IV Centenário da municipalidade desta vila, e a que assisti a convite do nosso compatriota Eng. Hugo de Macedo, Presidente da Comissão executiva do monumento a João Ramalho, de iniciativa da Colónia Portuguesa e solenemente inaugurado um mês antes da Exposição, em 8 de Abril. Guardo para mim as impressões afetivas da visita e os ensinamentos das conversações, designadamente com o insigne historiador Afonso d'Escragnolle Taunay, mas ao meu bom Amigo creio não ser indiferente saber que a Exposição Industrial, em cujo arranjo participou ativamente o artista português Landerset Simões, constituiu a afirmação admirável dos progressos da municipalidade que conserva o nome do povoado fundado por João Ramalho no caminho do mar e à borda do campo, isto é, da clareira na floresta circundante, e cuja primitiva localização não tem sido possível determinar. Bastará dizer-lhe que Santo André da Borda do Campo, cuja população orçava no ano findo por 130 mil habitantes, tinha em 1940 trezentos e três estabelecimentos industriais, cujo número se elevou em 1952 a setecentos e quatro. O valor da produção industrial foi em 1940 de seiscentos e noventa e seis milhões de cruzeiros, e em 1951, de seis biliões, cento e vinte e nove milhões de cruzeiros; e nas suas fábricas trabalhavam em 1952 quarenta mil operários, que contribuíram para o Instituto de Aposentadoria dos Industriais com a importância de 75 milhões de cruzeiros. Estes números sugerem o que é e o que representa Santo André, cujo desenvolvimento não tem par em qualquer outro município do interior do Estado de S. Paulo e cujo progresso urbano está em relação com o progresso industrial, pois somente no ano de 1952 foram construídos cerca de 1.900 prédios.

Como vê, bastaria a conservação do nome do povoado que o seu conterrâneo fundou, e cujo paço municipal e cujas defesas militares custeou de seu bolso quando foi elevado a vila, em 8 de Abril de 1553, para lhe perpetuar o nome, mas a verdade é que a sua vida tem mais amplo e profundo significado. É que a personalidade de João Ramalho é como que inseparável da idiossincrasia paulista e, porventura, também da própria fundação de São Paulo.

No que toca a este último assunto, o meu bom Amigo não toma partido, mas esclarece o leitor acerca de alguns dos dados essenciais de uma controvérsia, na qual têm sido apresentados como candidatos e favoritos os Padres Manuel da Nóbrega, provincial da Companhia de Jesus no Brasil, Manuel de Paiva, que rezou a missa padroeira, e José de Anchieta, no qual como que se cristalizaram os empreendimentos da Companhia no planalto piratiningano, e os leigos João Ramalho, o fundador de Santo André da Borda do Campo, Tibiriçá, o brasilíndio sogro de João Ramalho e que participou na defesa de Piratininga, e por fim, mas não em último lugar, Martim Afonso de Sousa, «conquistador» e primeiro donatário da Capitania de S. Vicente, que oficialmente iniciou a colonização e no planalto paulista fundou um povoado de efémera existência.

Não desejo tomar partido na controvérsia. E não tomo partido, porque, dentre outras razões, penso que no caso de São Paulo não é o quem fundou que importa e tem significado, mas o que motivou o estabelecimento de um povoado no planalto piratiningano, o qual, volvidos quatro séculos, graças a condições propícias de conservação e desenvolvimento, se tornou na urbe absorvente e na metrópole poderosa dos nossos dias. Não pretendo, de forma alguma, diminuir o papel da vontade na fundação de aglomerados no Brasil. É um facto que se impõe, e a que o geógrafo Pierre Deffrontaines deu o devido relevo no estudo Como se constituiu no Brasil a rede das cidades. O que tenho em vista é o equívoco inerente à mentalidade antropomorfizante, que é a mentalidade que se compraz em desvendar no curso dos acontecimentos históricos o imaginário espetáculo de desígnios e premeditações, e se detém, coerentemente com a sua estrutura, em problemas de individuação, de diretiva e de comando. No caso de São Paulo o que importa é a compreensão do condicionalismo, que, para empregar a nomenclatura do Sr. Ernâni Silva Bruno, na recente História e Tradições da Cidade de São Paulo, elevou sucessivamente o «arraial sertanista (1554-1828)» a «burgo de estudantes (1828-1872)» e a «metrópole do café (1872-1918)», e fez com que os seus naturais adquirissem feição peculiar no conjunto da alma brasileira e contribuíssem, como ninguém, para a expansão geográfica e para a constituição das fronteiras do Brasil, com a audácia das bandeiras, que está para as terras do interior sertanejo como as nossas navegações para as rotas no mar ignoto.

Nesta ordem de ideias, é legítimo extrair dos documentos conhecidos o alcance da determinação do P.e Manuel da Nóbrega em fundar no Campo de Piratininga uma igreja como centro de catequização e como núcleo do Colégio em que pensava; e assim, o arraial ou aldeamento de São Paulo teria nascido e crescido em torno da capela da missão, o que aliás se verificou noutros povoados do Brasil e faz lembrar, de certo modo, a constituição das nossas freguesias medievais. Sendo eminentemente plausível, senão exata, esta ilação, nem por isso é suficiente e única, pois a par da motivação religiosa cumpre atender às exigências de ordem defensiva e económica, a que a vontade de quem quer não podia furtar-se, sob pena de se condenar ao suicídio.

Propriamente, não contaram, na localização, como não contam hoje, os mimos e produtos do solo. Como escreve o Sr. Caio Prado Júnior, no ensaio sobre O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo, «parece que os fatores físicos e naturais não tiveram aqui influência alguma. Na qualidade das terras, é esta uma das regiões mais pobres do Estado. Os centros agrícolas de importância não se localizam nas suas proximidades, e quem percorre os arredores da cidade, impressiona-se com a vida primitiva que aí domina... É este um fenómeno curioso e quiçá único no mundo. Num raio de muitas dezenas de quilómetros, a região de São Paulo é uma das mais primitivas e miseráveis do Estado. Apesar disto, contudo, acrescenta o penetrantíssimo historiador, de velha e notável ascendência paulista, «o local de São Paulo é, sob vários aspetos, privilegiado».

É que o que o solo lhe nega, dá-lho, com larga compensação, o clima, benigno, sem a insalubridade do litoral, e a situação topográfica, como que de comando das vias de penetração para o interior e sem a qual não teria sido possível o bandeirismo.

Para encurtar razões, basta notar que é na latitude de São Paulo, e partindo de São Vicente, que a abrupta muralha do Serra do Mar, ainda hoje revestida em largos traços de «mato» denso e impenetrável, apresenta maior facilidade de acesso. Era por este caminho, trilhado pelos índios, e não por outro, que do litoral vicentino se podia, com menor risco e fadiga, subir ao planalto, no qual habitavam numerosas tribos de indígenas, cujos braços proporcionavam a mão-de-obra indispensável, cujas almas atraíam o zelo missionário e cujos arraiais podiam ser — e foram-no — um perigo para os estabelecimentos e povoados do litoral e constituíam o único celeiro onde o colono de São Vicente podia abastecer-se de alguns víveres, que o solo da estreita faixa costeira não podia produzir.


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