Carta a Cristóvão Moreira de Figueiredo

Ao contrário da colonização do Nordeste, caracterizadamente costeira e desde o início vinculada ao açúcar, a colonização do litoral vicentino, desprovida de qualquer riqueza exportável, tinha necessariamente de avançar para o planalto onde está situado São Paulo, como imperativo vital de conservação e defesa, e pelo único caminho que a geografia impunha. Para se firmarem com segurança à beira-mar, os nossos careciam de poder escalar a Serra sem surpresas e de dominar o campo de Piratininga como fronteira contra ataques de indígenas.

Destas sumaríssimas considerações salta à vista o significado histórico da existência de João Ramalho no planalto, tornado, por assim dizer, tangível na nomeação por Martim Afonso de Sousa, no próprio ano em que fundou a vila de São Vicente, em 1532, de Guarda-mor, ou fronteiro, do Campo de Piratininga, e na miscigenação euro-brasílica, que nele entronca, «reforçadora, como escreve Afonso de Taunay no vol. I da História das Bandeiras Paulistas, da capacidade mental do vermelho e da musculatura do branco.»

Rigorosamente, isto é, com base na letra expressa dos documentos, talvez não possa falar-se de João Ramalho como fundador de São Paulo, mas não oferece dúvida que ele foi o pioneiro que tornou possível a fundação, volvidos somente dois decénios sobre a ocupação do litoral vicentino, quanto mais não seja por haver afeiçoado o índio à convivência com o invasor. Sem ele, o inevitável acontecimento da constituição duradoura de um povoado no planalto piratiningano é de crer que se viesse a verificar muito mais tarde, de sorte que o existência do seu conterrâneo se apresenta como condição prévia e necessária da génese do arraial que foi o nódulo da atual urbe, orgulho do Brasil.

Outra feição da sua vida o prende à Pauliceia: a familiaridade com os índios, de cujo conúbio com o branco surgiria a índole paulista, independente e altiva, e o bandeirismo, que Paulo Prado, nesse livro encantador que é a Paulística, e Cassiano Ricardo, na Marcha para Oeste, consideram consequência da colonização do planalto e do caldeamento das duas raças.

Falem por mim Paulo Prado, o C.te Eugénio de Castro, meu saudoso e sábio Amigo, e o Dr. José Pedro Leite Cordeiro, a quem quero cordialmente e felizmente se encontra na pujança do vigor e dos mais sérios anelos historiográficos.

O primeiro, neste passo do discutível e tão inteligente Retrato do Brasil: João Ramalho «foi o ascendente por excelência dos mamalucos paulistas que viriam a exercer tão grande influência na história do Brasil; foi o antepassado típico, como o descreve o primeiro governador, do antigo piratiningano, fisicamente forte, saudável, longevo, desabusado, e independente, resumindo as qualidades com que dotou gerações de descendentes.»

O segundo, levando mais longe o juízo, assim fechou o livro sobre A Expedição de Martim Afonso de Sousa. 4.0 Centenário da fundação de S. Vicente (1932): «Outro foi o espírito da gente que se caldeou à borda e nos campos de Piratininga, em oposição ao espírito vicentino, cuja ação a cordilheira e a orla do mar limitavam.

«João Ramalho, afrontando as serras e as matas em tantos passos difíceis de varar, pela trilha do índio galgou-as, dominou-as. E ao natural da terra se ligou para vencer o campo que se lhe abria largo ante os alhos, para, a seguir, com a geração mamaluca de que foi o patriarca, vir iniciar o domínio do sertão. Tornara-se com a sua grei um produto do meio geográfico, para quem era sedução da Natureza ou pendor de sua aventura acompanhar a corrente dos rios em busca do interior. Seguiram-no, já esquecidos do mar de que os separava a cordilheira; e daí, a bandeira; daí, o paulista; daí, o Brasil que amanhecia.»

O terceiro, finalmente, no capítulo sobre A Fundação de São Paulo, no volume I do São Paulo em quatro séculos, em via de publicação: «Nessa evocação, não podemos olvidar o invulgar relevo do «Patriarca do Campo», esposo de Bártira, daquele a quem Marfim Afonso de Sousa dera o título de guarda-mor do Campo, guindado a alcaide-mor do Campo por Tomé de Sousa, quando elevou o povoado de Santo André à categoria de vila, e que, mais tarde, sob o honroso título de primeiro capitão de guerra de São Paulo, a ele concedido «por vozes e eleição», ajudou Tibiriçá na defesa do berço onde nasceu a nossa metrópole. Trata-se de João Ramalho, origem máscula da ciclópica, audaciosa e impetuosa grei, cuja formação ele começou juntamente com Bártira e que se continuou, através dos anos, em outras uniões sábias e prolíficas de índios e de brancos, de virgens americanas e de portuguesas varonis, caldeadores da prole avassalante dos «calções se couro», que dilatou na América a conquista portuguesa, que traçou no mapa-múndi as fronteiras da pátria, dando a São Paulo o apanágio de ter sido o primeiro guardião dos limites do país, a espiar nos longínquos portais da demarcação  os picos nevados dos Andes, as florestas verdejantes do Amazonas ou as coxilhas sulinas a espraiarem-se nas margens do Rio da Prata.»

Tanto basta, meu bom Amigo, para que a reivindicação da glória de João Ramalho, que o seu amor ao torrão de Vouzela lhe ditou, se sinta justificada. E não só justificada, senão também compensada, porque se das suas buscas e indagações não resultou o esclarecimento das dúvidas que pairam sobre as razões que levaram João Ramalho a terras do Brasil, pelo menos fica decisivamente posta de parte a hipótese dele ser judeu de nascença, que ao que leio no livro sobre os Primeiros Povoadores do Brasil (1500-1530) do Dr. João Fernando de Almeida Prado, que muito recordo, aprecio e estimo, teve curso sob o amparo do grande Capistrano de Abreu.

É possível, senão certo, que outros venham depois de si, com novas contribuições e achegas, e, porventura, com fundamentais revisões, porque a História que se escreve jamais é definitiva e terminante; tenha, porém, a certeza de que esse possível monografista vindouro se deterá nas suas páginas como marco do estado atual dos nossos conhecimentos sobre o Patriarca dos Bandeirantes, o famoso Johann Reimelle das Warhaftige Beschreibunge (Francfort do Meno, 1576), cujo autor, o alemão Ulrich Schmidel, não conheceu pessoalmente quando visitou Santo André, em 1553, mas de quem diz que «havia guerreado e pacificado a província, reunindo 5 mil índios enquanto o Rei de Portugal somente ajuntaria 2 mil.»

Grata e afetuosamente,

Joaquim de Carvalho

Figueira da Foz, Páscoa de 1954. 


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