Um Túmulo Renascença. A Sepultura de D.S Luís da Silveira em Góis, por Vergílio Correia

ADVERTÊNCIA

O presente voluminho constitui o primeiro duma série de Subsídios para a História da Arte Portuguesa, que o Doutor Joaquim Martins Teixeira de Carvalho projetava editar como administrador da Imprensa da Universidade. A morte, arrebatando-o subitamente em plena febre de trabalho quando da sua fina sensibilidade de crítico e segura erudição muitíssimo havia a esperar, não lhe consentiu efetivar este plano amorosamente concebido, interrompendo as suas edições, tão acuradamente revistas, e os seus estudos, tão proficientemente elaborados...   

Está neste último caso o prefácio do presente estudo do meu ilustre colega na Faculdade de Letras, Dr. Vergílio Correia. Publicando-o, tal como o deixou, e lamentando que o não tivesse concluído, como tantos outros trabalhos em que subtil e eruditamente dilucidava vários problemas da nossa História da Arte, particularmente o renascimento coimbrão, começamos a realizar o seu projeto, de par que prestamos ao seu espírito e à sua memória a nossa homenagem.      

O administrador da Imprensa da Universidade

DR. JOAQUIM DE CARVALHO

 

E nysto vereys, senhor,

se he vosso servydor

quem foy tomar tal cuidado,

estando, tam desuiado,

de cuydar quee trouador.

GARCIA DE RESENDE, Cancioneiro

Geral, tom. V, p. 307.

Apesar do grande número de documentos que nestes últimos trinta anos se têm descoberto sobre os artistas do século XVI, das obras criadas por eles nos mosteiros de Santa Cruz, Celas e Santa Clara de Coimbra, e dos trabalhos de análise e crítica de que têm sido objeto, a maior parte dos pontos da evolução histórica da escultura coimbrã do Renascimento estão ainda por resolver.

É opinião corrente que os investigadores passados esgotaram as fontes de informação, que as crónicas são áridas, que cartórios e arquivos não podem conter um documento só ignorado, de interesse. Eu penso pelo contrário que não só essas fontes não estão secas; mas que é urgente e necessário fazer a revisão de todos os trabalhos e documentos publicados até hoje; porque todos, sem exceção de um só, me parecem suspeitos por serem feitos sob a orientação de opiniões preconcebidas.

Por isso é sempre com alegria que vejo alguém entrar cheio de confiança, o coração a bater de curiosidade inquieta, em campo abandonado de ceifeiros depois de colhida a seara; porque não é raro vê-lo sair com as mãos cheias das espigas que os outros tinham deixado, com o restolho doirado, sobre o chão.

Cada documento novo que aparece, mais me aviva a esperança, antiga e forte, de que um dia se descobrirão os que faltam para iluminar inteiramente a história da arte coimbrã.

O Sr. Dr. Vergílio Correia é um historiador feliz. Muito novo ainda, tem já trabalhos de valor sobre etnologia, arqueologia artística e história da arte. É um triunfador, sempre aplaudido com simpatia crescente, a cada trabalho novo. E tudo merece a sua inteligência, a sua boa vontade, a sua fina e rara sensibilidade artística, o seu trabalho porfiado, da melhor e mais bem orientada erudição.

Vou tentar explicar o alvoroço com que tive conhecimento das suas novas descobertas, num terreno há tanto tempo batido por mim, e as razões do empenho que desde esse momento mostrei de as publicar, bem longe de imaginar que teria de as comentar, trabalho difícil, mas que, por isso mesmo, me é muito mais grato.

Toda a história do renascimento coimbrão se move à volta das obras realizadas por D.S Manuel no mosteiro de Santa Cruz, e que a princípio foram feitas com muita precipitação.

Explica o caso uma historieta monástica que Fr. Marcos da Cruz arquivou no seu manuscrito sobre a Fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa. Conta o cronista agostiniano que, achando-se vago o lugar de prior do mosteiro por ter acabado um triénio, um cardeal, que conhecia as suas magníficas rendas, houvera do papa sem consulta de D.S Manuel, o lugar ambicionado. Não havendo modo de lho fazer largar, D.S Manuel nomeou prior o bispo da Guarda D.S Pedro Gavião com o encargo de deitar abaixo igreja e mosteiro e reedificá-los, e embargou as rendas do mosteiro para a obra. O cardeal, conta o cronista, vendo que nada poderia haver do mosteiro, abandonou o lugar e D.S Manuel pôde dá-lo à pessoa que lho mereceu.

Seja ou não verdade a sugestiva historieta, o que é certo é que as obras se começaram com grande precipitação e só entraram numa marcha regular com a reformação que veio fazer no mosteiro Fr. Brás de Braga.

As primeiras obras foram dirigidas na verdade por D.S Pedro Gavião, cujo Brazão se vê repetido em muitas partes do convento desde a frontaria até ao seu túmulo, obra de Marcos Pires na capela de Jesus, no claustro, ao lado da sala do Capítulo.

O mais antigo artista, que encontro nos documentos de Santa Cruz, é mestre Boytac, cujo nome aparece ortografado Buytaca (11 de Abril de 1511), Butaca (27 de Janeiro de 1513, 29 de Agosto de 1571), Botaca (29 de Agosto de 1571), Boutaca (1585-1586) Boytaca, Botaca, Boutaca, Butaca (no mesmo documento de 9 de Outubro de 1511); já estava em Portugal em 1490, ano em que se lançou a primeira pedra do convento de Jesus em Setúbal, obra que delineou e dirigiu e lhe valeu uma tença de 8.000 reais a cobrar depois de se casar e que em 1498 lhe era mandada pagar desde 14 de Janeiro de 1499, embora continuasse ainda solteiro.

Pensamos que as suas primeiras obras em Portugal, tenham sido na Batalha e que aí estabelecesse morada e constituísse família, pois o vemos dar, como morador ali, quando já dirigia obras em Coimbra, e ali encontramos seus descendentes no século XVIII, reclamando prazos que de longe vinham.

O seu nome foi mesmo dado a um lugar perto da Batalha por nele ter bens consideráveis.

Da Batalha se deslocaria primeiro para Lisboa a tratar da edificação do convento de Jesus em Setúbal e mais tarde para Coimbra a reedificar a ponte (1510-1516) entulhar os boqueirões e dirigir a obra dos açougues da cidade e a da reconstrução do mosteiro de Santa Cruz.

De uma carta escrita por D.S Manuel à Câmara de Coimbra em 22 de Setembro de 1510 se depreende que Boytac estava já nesta cidade a esse tempo. Aqui se conservava em Janeiro de 1511 e aqui o encontramos a 11 de Abril do mesmo ano assistindo na crasta do mosteiro de Santa Cruz a um emprazamento, em que figura como testemunha.

E, apesar disso é dado, em 14 de Abril de 1512, como morador na Batalha, cavaleiro da Casa del Rei e casado com Isabel Enriques, no termo de aforamento de três courelas de terra em Alcanena, feito pelos frades do convento de Santa Maria da Vitória ao nosso artista.

Em 24 de Janeiro de 1513, fazia concerto com D.S Pedro, bispo da Guarda para a continuação das obras de reedificação da igreja e oficinas do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.

Mestre Boytac não figura porém em nenhum documento conhecido como diretor da obra: é o executante de obras por concerto com o bispo.

O que seria mestre Boytac? Um estrangeiro com certeza, muito tempo tomado por italiano pela alteração Botaca do nome e as palavras sempre contestáveis de um cronista monástico. É um artista estrangeiro trabalhando na Batalha antes da chegada dos mestres do Renascimento. É um gótico, permita-se-nos o nome consagrado, apesar da impropriedade do termo.

Boytac pouco tempo trabalhou em Coimbra; a 20 de Março de 1514 começava a servir nas obras do convento de Belém, e, em Maio do mesmo ano, partia de Lisboa com Simão Luís para proceder à medição e avaliação de obras feitas nas praças de África.


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Vamos corrigir esse problema