Um Túmulo Renascença. A Sepultura de D.S Luís da Silveira em Góis, por Vergílio Correia

Vejamos o que dizem os documentos, visto que, sendo desconhecidas as características do trabalho artístico de Diogo Torralva é impossível atribuir-lhe ou recusar-lhe a paternidade de qualquer obra, tomando por fundamento a sua técnica que é sempre, como prova, superior às afirmações dos documentos, cuja interpretação é muitas vezes arriscada e nem sempre possível.

Vejamos por isso o que dizem os documentos.

Em parte alguma deles se diz que Diogo Torralva fosse encarregado da construção da sepultura, ou que ela se fizesse por desenhos seus.

As sepulturas deveriam ser feitas, dizem os documentos (infra, p. 33) pelo theor de hua amostra que se pera yso fez que esta asynada peito ditto diogo de torralva e pello dito snor luis da sylu

Aqui as assinaturas representam apenas o compromisso tomado pelas duas partes contratantes, Diogo de Castilho e D.S Luís da Silveira. Diogo Torralva é apenas o procurador de Diogo de Castilho, a sua assinatura representa por isso o compromisso solene deste e não o do escultor que o representa apenas.

Quando trata da edificação do paço novo, que D.S Luís da Silveira queria levantar em Góis, o documento diz que seriam pela mane do theor e ordenãça de hus debuxos que dello são feytos pello dito diogo de torralva e asynado per ambos.

Aqui a dúvida é impossível: o debuxo do paço foi feito por Diogo Torralva, além de ser também assinado por ele.

Mas esta segunda fórmula mais deve levar-nos a supor como fora de dúvida que o desenho para a sepultura não fosse seu, aliás se não justificaria a diferença de expressões, muito fora dos hábitos e praxes dos tabeliães daquele tempo.

Se a primeira fórmula amostra que para yso se fez se repetisse quando se trata da edificação do paço novo poder-se-ia isso atribuir a automatismo do oficio, sem contudo ser bastante para contestar a segunda obra a autor diferente do primeiro. O contrário é porém difícil de supor.

E pode, parece-me, explicar-se a diversidade dos dois textos, mesmo à face dos documentos.

Diogo de Castilho não tinha conhecimento perfeito das obras que D.S Luís da Silveira queria mandar fazer em Góis, por isso na procuração passada a Diogo Torralva diz vagamente lhe dava todos os poderes pera por elle em seu nome posa fazer e faça quais quer cõtratos cõ quaes qr pesoas ou pera sobre quaes quer obras q sejam per ho preço e preços q lhe bem pare çer tao inteyramente como elle poderya fazer se presente fose e em espeçiall cõ ho snor luis da sylu sobre as obras q hora mãda fazer na villa de gois e a yso obrygar sua fas ^é' a cumprir o fizer elle seu p que fara tao inteyramente como elle diogo de castillo poderya fazer e dezer e obrigar e açeitar se presente fose, o que quer dizer apenas que Diogo Torralva é autorizado por Diogo de Castilho a fazer uma escritura e não a fazer uma obra. Diogo de Castilho dá por bem dito tudo o que ele disser, por bem feito tudo o que ele assinar, mas mais nada.

Mas então porque mandou Diogo de Castilho a Torralva e não escolheu outro procurador?

Porque Diogo de Castilho não tinha senão uma informação vaga das obras a fazer e só um escultor e arquiteto o poderia representar com proveito. Diogo de Castilho conhecia Torralva que trabalhara com ele em Belém, constituiu seu bastante procurador por isso ao escultor que estava em Lisboa.

Mas os documentos dizem Diogo Torralva estante em Coimbra. Estava na ocasião em que Diogo de Castilho... fez, a procuração. Nesse documento, Diogo de Castilho é dado como morador em Coimbra (infra, p. 31); de Torralva escreve o tabelião ora estamte na dita çidade. Diogo de Castilho morava em Coimbra, Diogo Torralva estava lá de passagem, quando se fez a procuração.

Nunca se encontrou o nome deste artista em outro qualquer documento dos cartórios dos conventos ou da Universidade nem no de qualquer tabelião de notas.

Torralva figura tantas vezes nos documentos conhecidos sobre os escultores e arquitetos do Renascimento, em Coimbra, como João de Castilho. Passaram ambos por aqui. Não moraram na cidade nem há obra que possa atribuir-se-lhes. Torralva passou por Coimbra. D.S Luís da Silveira estava em Lisboa no seu palácio dos Mártires. Diogo de Castilho aproveitou a ocasião e nomeou seu procurador a Diogo Torralva de quem fora antigo companheiro do trabalho, e por isso conhecia bem. Mandou naturalmente logo o debuxo da sepultura pois era esse o grande empenho de Luís da Silveira que se dirigira a Diogo de Castilho por querer a obra feita em pedra de Ançã e aconselhar que vissem h tia sepultura do Regedor Ayres da Silva que esta em Sam Marcos junto de Tentúgal e daquella sorte a fizessem e ainda melhor.

Diogo de Castilho estava duplamente indicado para tomar conta da obra, por morar em Coimbra, e ser mestre das obras dos paços reais de Coimbra (7 de Abril de 1524), dirigir obras importantes no Mosteiro de Santa Cruz e ser o parceiro de empreitadas do mestre Nicolau a quem Aires Gomes incumbira o altar e as sepulturas da capela-mor do mosteiro de S. Marcos, a que D.S Luís da Silveira faz referência no seu testamento.

A comparação das duas abóbadas de S. Marcos com a que sustenta o coro da igreja de Santa Cruz de Coimbra, e é de Diogo de Castilho, levam a atribuir-lhe a de S. Marcos e justificam a atribuição que lhe faz da abóbada da igreja de Góis o Sr. Vergílio Correia.

Quanto ao desenho do túmulo, Diogo de Castilho, que conhecia a vontade de D.S Luís da Silveira, de que as sepulturas de Góis fossem pelo menos como as de S. Marcos pediu o debuxo a mestre Nicolau que tinha feito o das sepulturas então existentes na capela-mor do mosteiro e em que entrava a do regedor.

A sepultura do regedor está datada de 1522 em que foi feita, provavelmente na mesma ocasião em que ele mandara fazer o altar que tanto se pode datar de 1522, como de 1520, como de 1525, 1530 ou até 1560, quanto às características técnicas da obra, mas que tem de se datar anteriormente à morte de Aires Gomes, por conseguinte antes de Março de 1530.

Mas como a sepultura de Aires Gomes está datada de 1522 é de supor que essa data seja também a do retábulo, visto a capela-mor se ter feito de 1522 a 1523.

O ter sido feito o retábulo ao mesmo tempo que as sepulturas explicaria a pouca intervenção que mestre Nicolau deve ter tido na execução delas, que é rude e de modo nenhum do cinzel do delicado artista. As sepulturas foram feitas porém por desenhos de mestre Nicolau, porque reproduzem linhas construtivas e motivos decorativos particulares a este artista. Na sepultura de D.S Brites de Meneses há um bocado da decoração que foi executado por mestre Nicolau a ensinar os lavrantes que fizeram este e os outros dois e só imperfeitamente souberam realizar o desenho do mestre.

Todo o retábulo do altar-mor foi feito por mestre Nicolau ou por os seus ajudantes franceses. Em Coimbra não havia então lavrante capaz de executar nem mesmo os motivos decorativos cuja graça se vê, mesmo através das camadas de tinta que os cobrem.

O artista, muito ocupado com o retábulo, não pôde ocupar-se das sepulturas, o que não poderia dar-se se as sepulturas fossem anteriores a ele ou lhe fossem posteriores, visto serem destinadas à mulher, ao filho e a ele Aires da Silva o generoso promotor de toda a obra da capela-mor que mandou acrescentar e decorar.

Mestre Nicolau deu apenas os desenhos das três sepulturas do lado do evangelho da capela-mor de S. Marcos, tentou sem grande resultado dirigir a mão inexperiente dos lavrantes portugueses e corrigiu tanto quanto pôde as estátuas jacentes e as figuras que sustentam as carteias das arcas tumulares.

Tudo isto assinalou muito bem com a sua fina orientação artística o Sr. Vergílio Correia, quando, encarecendo as esculturas de Góis escreveu (infra, p. 16): Nenhuma das figuras correspondentes dos túmulos de S. Marcos se lhes pode comparar: nem os meninos de faixa ou tu nica dos túmulos dos regedores Aires e João da Silva, nem os selvagens coroados e vestidos de folhagem da arca tumbal do outro João da Silva que morreu em Ouguela em combate singular com um capitão hespanhol.


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