Manifesto do Reino de Portugal no qual se declara o direito, causas e o modo que teve para eximir-se da obediência do rei de Castela e Tomar a voz de D.S João IV. Nova edição, prefaciada por Joaquim de Carvalho

Partindo da verdade intuitiva de que o Estado não existe fora dos homens porque radica nas suas ideias, sentimentos, interesses e aspirações, ser republicano para ele era sinónimo de adesão consciente à vida do Estado, de tal sorte que o exercício normal da autoridade não repousasse na força ou na tradição, mas na opinião, isto é, na colaboração efetiva dos cidadãos. A liberdade, portanto, longe de importar a fragmentação da autoridade, tornava-se uma condição necessária do seu exercício e mais do que condição — o alvo da cidadania e da vida política.

Pelas origens históricas e inspiração ideológica, a propaganda de António José de Almeida teve como suporte social as classes populares e média e como alvo a pequena burguesia.

Foi assim, e não podia ter sido diversamente.

Em teoria, a democracia liberal não é possível sem o apoio de uma numerosa classe independente de pequenos agricultores, industriais e comerciantes e praticamente, parafraseando o dito de André Siegfried, é porventura viável em Portugal um movimento político extenso e renovador, que, ao orientar as cabeças para a esquerda, se esqueça de dar a sensação de que alojará com segurança na algibeira da direita os interesses, familiares e o dinheiro de cada um?

O individualismo da nossa formação moral, a tenaz tradição romana da propriedade, o predomínio esmagador do camponês na massa da nossa população, com seu amor ao pequeno agro, onde quase sempre o produto do trabalho pessoal sobreleva as condições naturais da terra, e sua cobiça da vida familiar autónoma, eram e serão, enquanto não for levada a cabo uma diabólica política de proletarização geral, os limites e condições vitais da propaganda republicana democrática e liberal.

Foi por não ter ofendido esta estrutura do nosso ser social e haver inspirado esperança na exemplaridade da administração pública, que a ação republicana rapidamente se transformou de atitude partidária e romântica em movimento nacional.

A sociologia ajuda-nos, pois, a compreender a assombrosa e profunda viragem

 da opinião pública, mas não a explica única e exclusivamente.

É que os movimentos políticos, para além da estruturação dos interesses e da renovação dos ideais, carecem do calor emocional e do dinamismo dos sentimentos. António José de Almeida foi a alma abrasada e comunicativa que aos tíbios insuflou esperanças e aos convictos, entusiasmos quase fanáticos. Na primeira década do nosso século nem as massas sofriam do delírio irracional e místico da sua suficiência, nem na política havia o anonimato do herói desconhecido. As multidões careciam de quem falasse por elas, lhes interpretasse o sentir, lhes modelasse o ideal vago e confuso; por isso a pessoa, individual e concreta, de todos os partidos e correntes de opinião, teve então a sua hora de popularidade.

Ninguém, porém, como António José de Almeida soube converter a propaganda em apostolado e comover sentimentalmente as multidões, que acorriam a ouvi-lo com ávida fé de prosélitos. Da sua boca elas ouviram algumas negações, isentas, porém, da conspurcação do ressentimento ou da perfídia; insistiu, por vezes com apóstrofes violentas e quase bárbaras, nos temas que mais captavam a opinião e mais fundo lavravam o desapego moral do regime, mas no íntimo procurava acima de tudo despertar o espírito público para as lutas cívicas em que se depura e acentua a honra dos povos.

«É indispensável, acrescentava, ir de antemão traçando o rumo que há-de seguir a pátria nova e esse rumo há-de ter por baliza capital a educação do povo».

Foi por excelência, nesses anos derradeiros da Monarquia moribunda, o tribuno popular. Da sua personalidade de político foi esta a imagem que o público fixou, e se essa foi a sua glória foi também, naturalmente, o seu defeito, porque o espírito que se treinara no estrado dos comícios confundira às vezes a tribuna parlamentar com o «tablado da praça pública» e na Câmara não via Deputados, mas «a movediça avalanche do povo português». E compreende-se.

É que António José de Almeida, como tribuno, foi acima de tudo um improvisador de génio. «Muitas vezes estudo com cuidado o assunto dos discursos que profiro, mas não se coaduna com o meu temperamento o estudar a forma literária, fixando de antemão as frases e os efeitos oratórios. As únicas tentativas que tenho feito para cultivar a minha medíocre eloquência são. ..esforçar-me por lhe conservar a espontaneidade», dizia na Carta ao Dr. Manuel de Arriaga, e noutro passo acrescentava que «um discurso não é somente constituído pelo que se diz. O olhar, a atitude, a paixão que se põe no gesto e na voz são fatores importantíssimos».

Pela veemência da sua honrada sensibilidade de convicto, pelos imperativos do combate da propaganda republicana, cujos tópicos fundamentais este livro arquiva e condensa, não deve pedir-se à oratória de António José de Almeida o que ela não comportava; há apenas que saber se, pelas condições pessoais e sociais, ela tem a marca original das grandes criações. A esta luz, António José de Almeida, quando outros títulos não tivesse, insculpiu perduravelmente o seu nome nos fastos da eloquência portuguesa.

A eloquência política nasceu com o Constitucionalismo; foi e será sempre em toda a parte, um produto dos regimes de liberdade. O tablado dos comícios e a tribuna parlamentar são os seus lugares próprios e quanto mais dramáticas forem as pugnas em torno dos interesses vitais da Pátria e mais incerta a sorte pessoal dos oradores, duvidosos os loiros ou os espinhos, o mando ou o presídio, tanto mais ardente, elevada e lírica é a oratória. Podem, acaso, confundir-se a eloquência de José Estêvão, impetuosa e romântica, de António Cândido, nobre e académica, de Hintze Ribeiro, serena e quase britânica na elucidação objetiva dos factos, de Alexandre Braga, literária e acerada, com a de António José de Almeida?

Os assuntos podiam ser os mesmos; o temperamento e as circunstâncias políticas, porém, ditavam-lhe um ritmo e uma elocução diversos, porque a eloquência de António José de Almeida foi acima de tudo lírica. Não hesitou nunca em patentear o seu «eu» profundo, e antes de conquistar as inteligências procurou sempre arrebatar os corações. As imagens poéticas inundam os seus discursos e panfletos de predicador; dir-se-ia um poeta, pelo apelo frequente à sensibilidade e pelo ritmo da linguagem. Venceu, no entanto, a retórica, o grande escolho da eloquência, e venceu-a precisamente pelo apelo direto à paixão, pelos arroubos de visionário, pelos cânticos de esperança e pelas explosões de ameaça e cólera patrióticas.

Por isso, o seu nome ficará na história da eloquência portuguesa, e quando teremos nós a história da nossa tribuna parlamentar e do estrado dos comícios, locais augustos onde o povo português, na última centúria, ouviu a voz dos seus dirigentes e dos seus profetas, das suas esperanças e das suas amarguras?

Revolucionário político, foi também o criador de um estilo oratório, no qual se não encontram, como em 1821 e nas primeiras legislaturas após 1834, grandes inovações vocabulares, mas onde arde uma fogueira de anseios e nobres paixões, expressas numa linguagem nem sempre polida.


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