Vida de bento de Espinosa em forma breve mas verdadeira, segundo documentos autênticos, e testemunho oral de pessoas ainda em vida, por João Colerus

Leitor:

Em proba e vernácula tradução, tens diante de ti uma narrativa famosa, hoje em dia vertida nas línguas mais cultivadas a qual terá leitores enquanto se estimarem os indiscretos tagarelas que trocam as ideias pelo relato da vida que lhes deu ser e amor.

Ninguém, como o filósofo Bento de Espinosa, aviltou tão refletidamente o vulgar conúbio do orgulho com a vaidade, do único conhecimento que importa com a curiosidade pueril. Convidando-nos à humanitas seu modestia, ele quis que pensássemos as coisas sub specie aeternitatis, de modo que fossem as ideias e respetivos ideatos, e não os efémeros episódios biográficos do pensador, os objetos das nossas vigílias e cuidações.

Tanto basta para notares que a índole deste livro não é espinosista.

Por um lado, transporta-te para o conhecimento do transitório e do circundante; e por outro não podes ignorar que seu autor foi adversário do espinosismo, aquela maneira de filosofar que conjuga no mesmo plano universalista da razão a indagação metafísica do ser e as inquietações religiosas, ou, por outras palavras, o conhecimento que explica com o conhecimento que salva.

No entanto, se te move a curiosidade indiscreta de saber como viveu Espinosa, deves lê-lo, e atentamente.

Nele aprenderás que o ignorante, aprisionado pelas mil agitações das causas externas, não goza jamais a paz verdadeira da alma (Ética,v. 42, Sch.), e a pobreza e as perseguições não são motivo de sofrimento nem de glória.

É assim este livro como portal que te cumpre transpor, e, se o leres meditadamente, compreenderás que se houvesse chamado em vida Maledictus , compêndio de perverso ateísmo, àquele mesmo sábio que, após um século sobre a sua morte, os mais claros engenhos da nossa Europa conhecem por Benedictus de Espinosa, encarnação da santidade laica.

João Colerus, autor deste livrinho, é o nome latinizado do pastor protestante Johann Kõhler, nascido em 5 de Janeiro de 1647, em Düsseldorf.

Iniciou o seu ministério em Mülheim; porém, aos trinta e dois anos, em 15 de Setembro de 1679, veio estabelecer-se em Amesterdão, como ministro da Igreja Luterana, e mais tarde, em 1693, foi chamado para a Haia, onde estabeleceu residência, exerceu o ministério, e faleceu em 1707.

Ao fixar-se na Haia, Colerus foi habitar com a mulher e filhos a casa situada no «Stille Veerkade», onde vinte anos antes a viúva do advogado Van der Werve instalara uma casa de hóspedes. Espinosa foi um dos inquilinos, com pensão, em 1670-1671. Podes supor que nesta casa reviu as provas do Tractatus Theologico-Politicus, (1670) e de certeza sabemos que os minguados recursos do seu orçamento lhe não consentiam o custeio da pensão; por isso se trasladou em 1671 para pousada menos dispendiosa. Foi habitar então a casa de Van der Spijck, hoje Domus Spinozana por subscrição internacional, sita a dois passos daquela, no Paviljoensgracht; aí viveu os derradeiros anos, rematou a Ethica ordine geométrico demons trata e faleceu em 21 de Fevereiro de 1677.

Se invocamos estes factos, aliás relatados adiante e corroborados por investigações recentes , foi para te advertir, Leitor, da circunstância de Colerus ter habitado numa roda onde se recordara com ternura o solitário, que havia feito da meditação da vida, e não da morte, o escopo do seu pensamento.

Quando Colerus se instalou na casa do «Stille Veerkade» já não vivia a viúva Van der Werve; viviam, porém, outras pessoas que lidaram com Espinosa e se algumas ouviu, a preferência do pastor luterano distinguiu sobretudo o pintor Hendrick van der Spijck. Este haver-lhe-ia evocado o filósofo como indivíduo singular pela inteligência e pela afabilidade, pelo trabalho solitário, pela alegria comunicativa; e, vencido pela sedução daquela vida exemplar, embora convencido da falsidade perversora do espinosismo, redigiu esta biografia.

Assim, na génese como na publicação, o relato é obra de imparcialidade.

Na Páscoa de 1704 Colerus pregara aos fiéis da Igreja Luterana da Haia acerca de A verdade da Ressurreição de Jesus Cristo defendida contra B. de Spinoza e seus sequazes. A língua não se lhe prendeu na denúncia das blasfémias e pravidades. A crítica bíblica, da qual o Tratado Teológico-Político é monumento capital, bem como a substância e ordenação das ideias metafísicas de Espinosa, eram em seu entender produção abominável de falsidades e blasfémias, e do mais pernicioso ateísmo que se vira no mundo.

Ao dar à estampa o sermão, proferido em holandês, fê-lo seguir da biografia do filósofo, cujo título se encontra em tradução exata e completa na portada deste volume; e assim no mesmo tomo, impresso em 1705, em Amesterdão, por J. Lindenberg, o pastor cumpria o que julgara dever de consciência contra o filósofo, e o biógrafo, escrupuloso da verdade, nada omitiu que desfigurasse o retrato moral do homem.

Exemplo raro de equanimidade, bem compreensível, se recordares que Stolle, seu compatriota, te apresenta Colerus como homem sério, de humor um pouco rabugento e de espírito mediano, porém zeloso da ortodoxia da sua Fé e dos deveres de pastor.

No ano imediato, em 1706, o editor da Haia E T. Johnson publicava uma tradução francesa, graças à qual a biografia conquistou largo público: La vie de B. de Spinosa tirée des écrits de ce fameux philosophe et du témoignage de plusieurs personnes dignes de foi, qui Pont connu particulièrement; seguida de La verité de la Résurrection de Jésus-Christ défendue contre B. de Spinoza et ses sectateurs , par Jean Colerus, ministre de l'Église luthérienne de La Haye. La Haye, 1706, in-12.

Com esta tradução, o original ficou na penumbra, pois ela só serviu de texto às versões inglesa e alemã , que em poucos anos se lhe seguiram.

A tão dilatada voga sucedeu o silêncio, até que, no século passado, mormente depois da comemoração do segundo centenário da morte de Espinosa, sagrado pelo discurso famoso de Renan mais perduravelmente do que com a ereção da estátua do Filósofo no Paviljoensgracht, o livrinho de Colerus recobrou nova e mais fundamentada atualidade. Não curemos, porém, de lhe organizar a lista das edições e traduções recentes; esse é trabalho adjetivo, e demais referir-te-ei algumas nas notas às epístolas do apêndice.

Troquemos antes o fácil labor pela estimação da obra mesma.

No conjunto, é digna de crédito. A crítica aponta-lhe erros na grafia de nomes, como por exemplo chamar à viúva Van der Werve, Van Velen, omissões e deficiência de informes; porém os derradeiros capítulos sobre a vida do filósofo na Haia são páginas definitivas em que deves confiar.

Colerus publicou a Levens-Beschryving vinte e oito anos depois da morte do filósofo. Ignora-se o ano em que deu início à redação; sabemos apenas que esta não pode ser anterior à sua ida para a Haia (1693).

Conjecturo, no entanto, em tão incerta matéria, que Colerus se decidiu depois de 1698, servindo-me de ponderosa razão a circunstância de ele citar a tradução holandesa do artigo que o famigerado Pedro Bayle dedicou a Espinosa no Dictionnaire historique et critique, e no qual instaurou, por assim dizer, o processo da teologia racional.

Neste lapso, decorreu tempo suficiente para obliterar o conhecimento da vida de Espinosa anterior à residência na Haia; por isso é particularmente rica de informes e crédito a derradeira quadra, e se é certo que Colerus procurou documentar-se acerca da vida do filósofo em Amesterdão, Rynburg e Voorburg, lendo designadamente as cartas deste, (1661-1676) e o prefácio das Opera posthuma (1677) do seu biografado, os dados que coligiu não têm a frescura dos colhidos diretamente na Haia.


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