Colerus não empreendeu obra inédita. Precederam-no Pedro Bayle, como já te disse, e o jornalista francês João Maximiliano Lucas (1636?-1697), autor de La vie de feu monsieur de Spinoza, escrita talvez em 1678, a qual se conservou inédita até 1719.
Esta biografia, ou antes apologia fervorosa, escapou, como era natural, às indagações de Colerus; porém o paralelo dos dois biógrafos, se confere a Lucas o valor da prioridade e do testemunho pessoal, dá a Colerus crédito e valimento histórico.
Devemos muito à investigação erudita do século findo e do atual. Sabemos mais factos, conhecemos mais alguns pormenores, compreendemos melhor e mais profundamente a filosofia do solitário da Haia; porém, o retrato moral que Colerus debuxou para a posteridade persiste quase sem retoques, tanto na moldura de paz e alegria serena, como no traço de desprendimento de honrarias temporais e quietude de afetos duradoiros. Do eflúvio moral que se evola desta singela narrativa disse com maliciosa ironia um francês do século XVIII que «gerava no leitor o desejo de exclamar: Sancte Spinosa, ora pro nobis»; porém é fora de dúvida que Colerus, talvez contra sua intenção, fez da vida de Bento de Espinosa a legenda de um santo laico.
Desde a simplicidade do estilo até à índole grave do autor, da sinceridade da narração à compassiva compreensão do filósofo, — tudo concorre para impregnar a obrinha da suavidade das narrativas hagiográficas.
Foi tradutor deste livro João Lúcio de Azevedo, autor da História de António Vieira, da História dos Cristãos Novos Portugueses, de O Marquês de Pombal e a sua época, das Novas Epanáforas, além de outros escritos, alguns dos quais menores na extensão que não no saber e juízo.
Na nossa República das Letras, à data do seu passamento, ocorrido em 5 de Novembro de 1933, ele era reputado sem discrepância o mais famoso historiador, sumamente erudito e circunspecto. De modéstia singular, afastou a notoriedade com zelo só comparável ao daqueles que consomem fazenda e porfia para a lograrem; porém a sua pessoa gozou as delícias do respeito e da amizade dos sábios, e seus escritos não padecerão míngua de estimação pelo atrito do tempo.
A empresa da versão brotou de um feliz acaso de comércio epistolar.
Viemos ao conhecimento de J. Lúcio de Azevedo manusear escritos holandeses e logo se reacendeu em nós o antigo e veemente desejo de lermos na nossa linguagem tão estimável livrinho.
À bondade do sábio, apesar de combalido pela idade provecta, deves, Leitor, a rara fortuna, que honra a terra onde viveram os antepassados de Espinosa e o idioma que este falou na puerícia; e se leres as epístolas justificativas, verás que ele te oferece uma tradução proba, sem par na fidelidade.
A sua tradução é cronologicamente a última; não hesites, porém, em a capitular de primeira na ordem da objetividade.
Este foi o seu derradeiro labor; os olhos do sábio, embora não vissem o livro concluso, por culpa nossa, pousaram ainda com serena prudência na linha final do texto.
Inclina-te, Leitor, perante a respeitável memória do homem, que com benemérita solicitude e idêntico afeto serviu o que julgou ser a Verdade e a Pátria portuguesa!
Coimbra, Dezembro de 1933.
J. C.