Prefácio

Fui criado no respeito pelo Dr. António dos Santos Rocha, respeitado, aliás, por todos os figueirenses, novos e velhos. A nomeada do seu saber e dotes de advogado, o reconhecimento pelos serviços prestados como presidente da Câmara, a fundação do Museu Municipal, inaugurado em 6 de Maio de 1894, a fama dos seus escritos e a própria impressão que se desprendia do seu porte, grave, digno, distante, sem familiaridades nem afetação, tornaram-no o figueirense mais representativo e considerado do seu tempo.

Falei-lhe uma ou duas vezes, no Museu, fugidia e timidamente, andava eu pelos quinze ou dezasseis anos, mas verdadeiramente nada posso dizer acerca do seu trato, porque não lhe frequentei a casa nem da sua voz recebi ensinamentos e conselhos. A sua morte, repentina, ocorrida em 28 de Março de 1910, privou-me de com ele estabelecer relações do teor das que por então estabeleci, e inolvidavelmente recordo, com o Dr. José dos Santos Pereira Jardim, seu cunhado, e com Pedro Fernandes Tomás, seu associado e colaborador em todos os empreendimentos intelectuais de significação coletiva. O meu acesso ao seu trato viria a ser por assim dizer, inevitável: abriam-mo estes dois saudosos e respeitados amigos, e facilitava-o a minha situação de estudante universitário, que por então dava certa categoria e, sobretudo, despertava no Dr. Rocha a esperança de um possível aprendiz de assuntos que lhe eram queridos.

Não posso, pois, falar do Dr. Santos Rocha com conhecimento pessoal, mas o que me falta em experiência direta como que sobeja em informação de outiva, pelo muito e variado que me contaram os que com ele lidaram de perto, designadamente Pedro Fernandes Tomás, cuja amizade e consideração pela obra do criador do Museu Municipal e do presidente da Sociedade Arqueológica da Figueira, fundada em 1898, lhe não faziam esquecer a mágoa pelo desapego com que deixara sair da Figueira a livraria de Aníbal Fernandes Tomás, o consumado bibliófilo que coligiu uma das mais valiosas e seletas livrarias de que há registo, e meu sogro, seu companheiro de rapaziadas que me ofereceu uma expressiva fotografia na qual se vê ter sido o Dr. Santos Rocha na sua mocidade tão folgazão quanto foi na maturidade homem grave e respeitável.

Tudo isto, porém, é, mais ou menos, do domínio da curiosidade, porque o ser profundo, ou mais propriamente, a individualidade histórica do Dr. Santos Rocha é constituída pelas ações do homem público e pelas páginas do escritor devotado ao estudo da sua terra natal, cujo passado e cujos progressos materiais e cívicos constituíram os objetivos mais incitantes da sua mente. Do homem público, ficou memorável o zelo das duas administrações do Município (1878-1880 e 1902-1904), e da atividade do escritor falam e falarão perduravelmente os escritos jurídicos, as explorações arqueológicas, relatadas com uma precisão e minúcia que sempre as tornarão acuais, e a monografia histórica sobre a formação e desenvolvimento urbano da Figueira da Foz —, Materiais para a história da Figueira nos séculos XVII e XVIII, vinda a público em 1893.

Todos os escritos do Dr. Rocha se caracterizam pela conexão direta e radical com os factos. A sua mente elevou-se, sem dúvida, a generalizações e interpretações de sentido teórico, designadamente em relação a certos pontos da arqueologia pré-histórica, mas a característica fundamental da sua mentalidade é a positividade, entendendo por tal o pensamento que se constitui e procura mover-se no âmbito dos factos diretamente colhidos e observados. Os Materiais para a história da Figueira respondem não só ao ditame desta mentalidade, senão que a exprimem cabal e notavelmente. É que este livro, modelo de probidade intelectual, foi pensado e construído somente com as fontes e dados que o Dr. Santos Rocha pôde colher direta e imediatamente na Figueira no arquivo da Câmara, nos cartórios notariais e na copiosa documentação da Alfândega, que, — habent sua fata libelli! Providencialmente adquiriu e salvou do inevitável desaparecimento.

Sem estes documentos, não era, nem é, possível a historiação do nosso burgo, mas sendo indispensáveis e de primeira água não são únicos nem plenamente suficientes. Daí, o Dr. Santos Rocha ter conduzido as indagações somente no âmbito do que lhe era acessível, dada a especificação dos arquivos figueirenses, mas o que, sob o ponto da extensão, implicou limitações, deu ensejo, sob o ponto de vista do aprofundamento, à formulação e ao desenvolvimento de temas que escapam ao comum dos monografistas locais e conferem a este livro uma posição singularíssima, senão única, no conjunto da já copiosa bibliografia das monografias locais.

No geral, ocupam-se das vicissitudes histórico-políticas, das ocorrências locais mais relevantes e dos usos e costumes, dando natural realce à biografia de conterrâneos de nomeada; nenhuma, porém, como os Materiais para a história da Figueira nos séculos XVII e XVIII tomou por objeto tão precisa e claramente a topografia, a formação do burgo e o seu desenvolvimento interno, crescença, e respetiva caracterização das atividades económico--sociais e da peculiaridade do seu conviver. Sob este ponto de vista, os Materiais são uma obra sem par, singularizada ainda pelo rigor do método pela precisão dos informes e pelo valor dos ensinamentos sociológicos que desentranha e cujo alcance transcende as fronteiras do próprio burgo.

Como o título sugere, os Materiais não constituem propriamente uma monografia histórica, — o que aliás a proba consciência do Dr. Santos Rocha ressalvou nos períodos finais da dedicatória «aos conterrâneos» e que se não leem sem comoção. São «materiais» no pleno sentido da palavra, mas materiais exatos e fundados, tão definitivos no respetivo âmbito que para sempre se imporão a quem um dia retome a historiação do nosso burgo com a documentação que o Dr. Santos Rocha não pôde compulsar.

Tanto basta para assinalar o mérito dos Materiais para a história da Figueira, cuja reedição, oficial, por deliberação da Câmara Municipal, é obra benemérita, no pleno sentido da palavra, por conjugar, a um tempo, o respeito moral, o apreço intelectual e a gratidão pública pela memória de um figueirense exemplar na dedicação à nossa terra natal.

Nenhuma outra manifestação podia ser mais grata ao espírito dos que se associaram às justas comemorações do centenário do nascimento do Dr. António dos Santos Rocha; se o bronze do seu busto torna presente ao viandante a sua existência inolvidável, se a oratória das sessões deu a conhecer facetas da sua atividade, cabe à presente reedição a função meritória de instruir os jovens figueirenses no conhecimento da Figueira, cuja história, ao longo de incontáveis gerações, é ensinamento dignificador do valor da tenacidade do trabalho, do espírito de iniciativa e do amor da independência, que são, afinal, as qualidades que contam na vida das famílias e na história dos povos.

JOAQUIM DE CARVALHO


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