Excerpta Bibliographica Ex Bibliotheca Columbina

As observações etnográficas e de geografia física e económica, que dão valor e caracterizam o Livro, tornam-se claramente explicáveis desde que se reconheça a autoria de Duarte Barbosa, em quem concorriam o conhecimento da língua, dos costumes e o dos produtos naturais, cuja meticulosa observação só agradaria a quem tivesse trocado a espada pelas funções administrativas e fiscais. Todo o Livro tem um proeminente carácter de observação pessoal, a qual só poderia desenvolver-se numa larga permanência.

Duarte Barbosa foi para Sevilha, quando já lá estava Fernão de Magalhães. Deveriam ter privado intimamente, tanto mais que o circum-navegador nesta cidade se ligara à sua família, casando com uma filha de Diogo Barbosa, tio de Duarte . Viveriam as mesmas lutas e as mesmas esperanças, e quando a Trinidad desgarrou de S. Lucar de Barrameda levava a bordo Duarte Barbosa, contratado como «sobresaliente».

Desta privança pretende o Sr. Blázquez deduzir um outro argumento a favor de Fernão de Magalhães. «Si Barbosa — escreve — hubiese sido su autor habria pedido por su conocimiento de aquellas tierras un puesto distinguido en la empreza; habria sido el quien presentara al Rey Carlos I la «Descripcion» y no habria consentido ir de sobresaliente, es decir sin cargo alguno en la empreza, al nivel de otros muchos de los que acompariaron a Magallanes». Faltam-nos elementos seguros para precisar os motivos por que Barbosa embarcou na situação de «sobresaliente»; mas será, talvez, oportuno recordar que deliberadamente se pretendeu reduzir a participação portuguesa na arrojada expedição . Barbosa nunca renegou a sua Pátria e, embora oficialmente fosse numa situação inferior aos seus méritos, seguiu na nau capitaina e mais tarde, morto Magalhães, é, com João Serrão — seu amigo desde a Índia — o dirigente da expedição.

O facto de ter escrito o Livro não lhe conferia ipso-facto autoridade para apresentar a Carlos V o plano do empreendimento, ou reclamar um lugar de destaque na equipagem. Não era a Índia que Castela pretendia, mas

as Molucas, e a possibilidade de as atingir, navegando dentro da linha de demarcação que o tratado de Tordesilhas lhe fixou. O Memorial de Magalhães não visa outro fim; e as concisas indicações geográficas e derrotas nele fixadas, familiares aos pilotos portugueses, não permitem estabelecer paralelo com o Livro de Duarte Barbosa, no qual seu autor não curou de determinar a rota, a longitude e a latitude das terras e povoações.

Náo há entre o Memorial e o Livro confronto possível; mas, sem embargo, Duarte Barbosa não prestaria a Magalhães toda a assistência moral, sem regatear esclarecimentos e informações, procedendo com a maior isenção e modéstia? A amizade e o parentesco não impulsionariam a sua sensibilidade moral, porventura delicada, a retrair-se, para que a personalidade de Magalhães ressaltasse? Não o sabemos, nem talvez nunca possamos dizê-lo ao certo; mas temos por muito provável a resposta afirmativa, tanto mais que o pouco que sabemos da sua vida não nos habilita a julgá-lo como um vulgar ambicioso e um amigo desleal. Magalhães saíra de Portugal arrastado por uma ideia, que o imortalizaria, e quando Duarte Barbosa foi para Sevilha já ela não constituía segredo e, porventura, tinha já começo de execução. A circunstância de Barbosa embarcar na Trinidad não confirma a confiança que Magalhães nele depositava:? O exame do texto castelhano publicado pelo Sr. Blázquez comprova o juízo de Varnhagen, pois os lusitanismos, que nele abundam, constituem evidente sinal da prioridade da redação portuguesa. Por todos estes argumentos parece-nos não sofrer dúvida que Duarte Barbosa foi o autor do Livro, cuja tradução espanhola corre em nome de Fernão de Magalhães sob o título Descripción de los reinos, costas, puertos e islas que hay desde el Cabo de Buena Esperanza hasta los Leyquios.

Como conciliar, porém, os testemunhos de Gaspar Correia e Fernando Colombo, se ambos são fidedignos? Teria Magalhães escrito uma Relacion de

la índia de Portugal, obra diversa do Livro de Duarte Barbosa e cujo manuscrito apenas viera ao conhecimento e à posse de Fernando Colombo? Não nos parece provável, pois dificilmente se compreende que o facto tivesse sido esquecido por todos os biógrafos que escreveram no século XVI. Não podendo ser o manuscrito castelhano, que o Sr. Blázquez publicou, não só pelo que dissemos, como ainda pela notícia de Ramusio, informando que em Sevilha existia também um manuscrito do Livro de Duarte Barbosa  parece-nos que o registo columbino encontra a seguinte explicação: No tom. III (1920), p. 112 e segs., da Colección General de Documentos relativos a las Islas Filipinas existentes en el Archivo de Indias, foi publicada uma relação geográfica sem título, sem data e sem autor, mas cujo conteúdo é fixado no proémio: Estos son los lugares y puertos e yslas précipales que ay dei cabo de buena esperança hasta los leyquios es lo-qhasta agora mas se a descubierto e q mas noticia tiené en portugal. Este documento, existente no Arquivo de Indias (Patronato, Est. I, caj. 2, leg. uh), encontra-se junto de outros documen-tos referentes à expedição de Magalhães, e em especial do «Memorial que dejo Fernando de Magallanes cuando partió para la Especieria» . Esta incorporação não parece fortuita, mas se deste facto, puramente externo, se passar à análise interna da relação, verificar-se-á ser um resumo do Livro de Duarte Barbosa. Como este, começa pelo Cabo de S. Sebastião, próximo do da Boa Esperança, e termina com as ilhas dos Lequios, percorrendo sucessivamente as mesmas paragens e pela mesma ordem. É, em suma, uma tradução resumida, na qual os lusitanismos são tão transparentes, que, além do texto de origem, seu autor deveria ser português. Quem a teria feito? Não o podemos dizer ao certo; mas o registo columbino leva-nos a supor que seria Fernão de Magalhães, ou o próprio Duarte Barbosa, mas que, fazendo-a anonimamente, deixou que ela corresse em nome do seu parente. Magalhães carecia de justificar o seu conhecimento do oriente e a viabilidade da sua pretensão; não seria esta relação um dos títulos que juntou, ou, por ele, e em seu nome, algum amigo como Diogo Barbosa? É uma hipótese, mas dada a fidedignidade dos testemunhos de Correia e Fernando Colombo não encontramos outra forma de os conciliar.

b) IMPRESSOS

FR. GOMES DE LISBOA E O AVERROÍSMO

DA ESCOLA DE PÁDUA

(NOTA BIBLIOGRÁFICA)

O estudo da cultura portuguesa quatrocentista e quinhentista nas suas relações com a cultura italiana tem sido feito principalmente no ponto de vista histórico-literário; mas na sua complexidade oferece um campo vastíssimo, já em explorações de pormenor, já, e sobretudo, no estabelecimento de problemas ainda não formulados.

Um desses problemas é o das relações da nossa cultura com o averroísmo da escola de Pádua, cuja influência no movimento racionalista do século XVI está, por assim dizer, na ordem do dia entre os historiadores da filosofia da Renascença. Roger Charbonnel estudou-o como elemento fecundante da «libertinagem intelectual» , e Henri Busson como uma das principais fontes do racionalismo na literatura francesa do séc. XVI"; mas o historiador das ideias filosóficas em Portugal poucos factos encontra nestes sábios

trabalhos, sob outro conceito tão ricos de sugestões e pontos de vista originais sobre a marcha do pensamento europeu.


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