A Conquista do Direito (a propósito da «Conquista do Direito na Sociedade Romana», do Dr. Artur Montenegro, Coimbra, 1934)

Nem tudo são diabruras no mundo; há ainda coisas sérias, insubornáveis às lambedelas da corrupção e peloticas da arteirice. Uma dessas coisas é a ideia do Direito, e porque recentemente o Prof. Artur Montenegro nos historiou com escrúpulo científico, isto é, sem proclamar como histórico o que se resmunga como política, em que consistiu na sociedade romana a conquista do Direito, vale a pena meditar a obra e o seu tema, que é para nós, europeus, glória, suprema responsabilidade e consoladora esperança.      

A Conquista do Direito na Sociedade romana é obra longa e honradamente pensada. Do convívio com textos de lei e obras literárias, através das fadigosas jornadas por aquela babilónia de escritos sedutores e repulsivos que é a literatura latina, e da recolha meticulosa de factos e juízos, captados nas nascentes, com a difícil coragem de não dizer tudo, mas apenas o necessário, sobre o Prof. A. Montenegro fazer a coisa rara que é um livro.       

A admirável coisa que é um livro de interpretação histórica e sociológica!          

Arrancar a ideia à confusão caótica e seguir-lhe o curso profundo sem se perder no delta, evitando sempre os desvios fáceis, não é porventura o mais nobre exercício do verdadeiro saber do passado? Disse Vico que a filologia, ou por outras palavras, a erudição, apenas dá a consciência do que é certo, e que esta consciência só se converte em verdade pela razão. O juízo do fundador da filosofia da história é exato, porque a erudição e a ciência          são coisas profundamente diversas, tão diversas, que, se as identificássemos, cometeríamos o contrassenso de confundir o instrumento com a inteligência que o maneja. É que a ciência não é apenas o apuramento de factos criticamente exatos, nem a rigorosa colação de textos e de testemunhos. Tudo isto, onde às vezes penetra a agudeza do génio e é sempre exercício necessário à formação do espírito científico, pertence à zona da erudição, que não da ciência, a qual exige o encadeamento dos factos e a sua compreensão mediante uma ideia consistente e coerente. Sem a consistência dos factos, a ideia é poesia ou devaneio; sem a coerência da ideia, os factos são mudos e brutos. O prof. Montenegro fez obra de erudito, no sentido de que remontou às fontes dos factos, apurando-os com sagacidade e precisão; e fez também obra de ciência, porque disciplinou e integrou os factos numa ideia geral.

Esta ideia é o juízo de tarde, que serve de epígrafe ao seu livro, a saber: «o alargamento contínuo das relações de Direito», «belo e admirável progredimento que, apesar de tudo, acompanha todas as evoluções jurídicas». Foi esta ideia que o autor submeteu à prova da história da sociedade romana, sucessivamente crisol de virtude e cano de esgoto de todos os vícios. O autor partiu, pois, da ideia para os factos, e, como era lógico, o seu pensamento seguiu a marcha dialética: tese, demonstração, conclusão. O estabelecimento da tese era para o autor como que um dever. Professor distintíssimo de direito romano, que eu já não conheci em Coimbra como mestre e cuja fama, mais tarde, me chegou pela via de colegas exigentes, compreende-se que o tema da evolução e da expansão do Direito em Roma lhe acudisse espontaneamente; mas, abstraindo desta circunstância, há porventura na história romana tema mais digno e sedutor?

Creio que não.

O nascimento, as vicissitudes e a agonia de tão grande Estado; a crise das classes médias e suas consequências; o advento do cesarismo e o arranque derradeiro de Farsália — aquele, ensinando, de uma vez para sempre, que a liberdade se perde num momento, este, que a reconquista da liberdade é difícil e lenta; a era do Império, a sua tática administrativa, a sua corrupção, os janízaros e a ordem pública; a comédia cobarde e cínica do Senado sob os imperadores, e o desencanto da liberdade pela miragem da prosperidade e da vida fácil —, hão-de ser sempre objetos de reflexão e por vezes determinantes de atitudes. Lembremo-nos, apenas, de Oliveira Martins e da sua História da República romana...

Tudo isto, com ser excelente exercício para o estudo e ensinamento, abdica perante a magnitude da ideia do Direito. É que um povo civilizado não é o simples agregado de pessoas, nem a sua história se condensa na execução ostensiva e obstinada de planos de obras coletivas; é essencialmente uma maneira de querer e de esperar, um conjunto de valores morais e intelectuais, que orientam e medeiam a ação. De todos os impulsos da vida romana não é, porventura, o sentimento do Direito o único duradoiro e resistente, a mensagem suprema e eterna de Roma?

As construções monumentais e as boas e intermináveis estradas, mandadas fazer pelos Césares, sempre augustos para a camarilha e adulados por fazerem obra que a República não fizera — porque será que as Pirâmides do Egipto não foram edificadas em regime de liberdades públicas? — Existem hoje na evocação dos arqueólogos quando não enchem, como despojos, os museus; pelo contrário, a ideia do Direito e a luta pelo Direito foram, são e sê-lo-ão sempre, para nós, europeus, tão atuais e impulsivas como em Roma.

O prof. A. Montenegro quis apenas fazer obra de sistematização histórica e evitou, portanto, a apologia e a censura. Cumpriu o seu dever de historiador; daí o encanto do seu livro como construção intelectual. Os factos surgem e decorrem como se os movesse o imperativo finalista do Direito; e assim sistematizou a vasta matéria em dois grandes tópicos ou tendências capitais, a saber: a expansão espacial, e a evolução em profundidade.

Na dilatação espacial, isto é, na irradiação do Direito para círculos sucessivamente mais largos, o autor mostra como o Direito, que primitivamente vigorou pela autoridade social e religiosa do pater no seio de cada família, fora da qual havia o reino do facto, se estendeu ao agregado mais vasto, a que dá o nome sintético de casta, a qual, na ordem civil, generaliza concavenando-os, os direitos das diversas famílias, e na ordem política funda o patriciado, então único e verdadeiro no povo romano.

Com a aprovação das XII Tábuas surge a igualdade civil entre os romanos — a mesma norma envolve patrícios e plebeus. É que o Direito ultrapassara a casta para senhorear a comuna; mas porque a civitas representava ainda um privilégio, os povos itálicos, primeiro, depois todos os membros livres do Império conquistaram os direitos do cidadão romano. Da comuna o Direito atingira o Estado. «O direito, que regera primeiro a família, depois a casta, em seguida a comuna, cingiu enfim todo o Estado. Ao cabo de séculos de luta triunfava do privilégio a igualdade legal» —, tal é a conclusão da primeira parte.

Além da irradiação espacial, o direito romano obedeceu ao impulso de penetração, isto é, dá margem em profundidade: naquela «a civitas foi a praça a conquistar»; nesta, «foi a potestas o baluarte a desmoronar», e para aluir o absolutismo do pater, travou-se luta contra a manus, a tutela perpétua, o pátrio poder e o poder dominical».

Para surpreender esta penetração do Direito o autor conduz-nos com mestria, segurança e sedução literária ao espetáculo das transformações daquela «pequena Sociedade de costumes singelos, onde o pai velava diligente os interesses da família, e a virtuosa matrona se confinava no estreito aposento comum, entretida a fiar lã e tecer pano».


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